Stress: o novo lema dos exaustos

Se Fernando Pessoa fosse vivo, o Álvaro de Campos provavelmente estaria num retiro de mindfulness em Sintra, enquanto o Ricardo Reis discutiria no Zoom o rebranding da crise existencial do grupo.

Há dias em que me pergunto se o fado, esse canto dolente que tanto nos define, não terá sido substituído por uma nova forma de expressão nacional: o lamento dos exaustos. De facto, de há uns tempos para cá, tenho observado esse curioso fenómeno linguístico nas ruas de Lisboa, e suspeito que o mesmo ocorra no Porto, em Coimbra, e até nas mais recônditas aldeias deste nosso belo país, também ele cansado de tanto queixume.

Antes mesmo de um “bom dia” ou de um “então, pá?”, as pessoas com quem me cruzo fazem questão de me informar sobre o seu estado de exaustão permanente. “Estou cansado”, dizem, não com o desespero histérico que seria de esperar, mas com a solenidade de quem acaba de receber um título nobiliárquico. É quase poético vivermos num país onde o cansaço se tornou símbolo de estatuto. “Não tenho tempo para nada”, acrescentam, com aquele orgulho discreto e, ao mesmo tempo, resignado que é tão tipicamente nosso.

Esta ladainha do cansaço tornou-se tão omnipresente que já me sinto exausto só de a ouvir. É como se tivéssemos coletivamente decidido que o cansaço é uma nova forma de patriotismo. Já não nos basta ser português. É preciso ser um português esgotado, à beira de um ataque de nervos, e ainda assim ser capaz de enfrentar mais um dia de trabalho com um galão numa mão e um pastel de nata na outra. E, já agora, com uma úlcera gástrica em formação, para ajudar à festa.

Em 1936, um tal de Hans Selye, um nome que soa mais a uma marca de eletrodomésticos do que a nome de cientista, decidiu batizar este estado de alma como “stress”. E eu imagino o pobre homem, provavelmente ele próprio à beira de um colapso nervoso, a pensar no que haveria de chamar a esta sensação de querer mandar tudo às urtigas, mas não o fazer porque se tem uma hipoteca para pagar e filhos para alimentar.

Curiosamente, o stress foi descoberto através de experiências com ratos, imagine-se! Coitados dos bichos, que nunca tiveram de experimentar o verdadeiro drama de tentar apanhar o último comboio no Cais do Sodré numa sexta-feira à noite, ou o desgosto de descobrir que a Glovo está a cobrar o triplo do preço por um bitoque às três da manhã.

Há quem diga que antigamente é que era bom, que não havia stress. Pois sim! Tenho a certeza de que os nossos antepassados, sem água canalizada, com pestes mais frequentes que promessas eleitorais, e com uma esperança média de vida que faria um adolescente atual parecer Matusalém, viviam num estado de permanente zen. Claro que sim! Hoje, uma simples falha do Wi-Fi é suficiente para nos levar a questionar o sentido da vida, do universo e de tudo o resto. É como se, de repente, fôssemos todos filósofos existencialistas, mas em vez de contemplarmos o absurdo da condição humana, temos ataques de pânico, só porque não conseguimos fazer upload da nossa selfie no Instagram. Que saudades eu tenho do meu velhinho ZX Spectrum!

E assim, o stress tornou-se no novo normal, o pano de fundo das nossas vidas, tão presente e inevitável como a chuva em abril ou os turistas a tirar fotos dos elétricos no Chiado. Uma ida às Finanças, por exemplo, já não é apenas aborrecida, é uma experiência existencial que nos faz ponderar seriamente a hipótese de emigração ou, em casos extremos, de nos juntarmos a um mosteiro budista no Nepal.

Mas aqui reside precisamente a questão, que me atormenta mais do que as minhas memórias reprimidas da adolescência: será que estamos realmente mais stressados, ou apenas nos tornámos mestres em dramatizar o quotidiano?

De facto, transformámos o cansaço numa espécie de novo lema da modernidade. “Estou exausto, logo existo”, diria Descartes se vivesse no nosso tempo e tivesse um emprego nas novas economias do empreendedorismo digital.

O dia começa com o drama do pequeno-almoço, uma decisão tão complexa que faria Hamlet parecer um verdadeiro mestre da eficiência. Torrada integral com abacate ou croissant com manteiga? Cada opção carrega o peso de todas as escolhas de vida que nos trouxeram até este momento. É como estar perante um abismo existencial, só que o abismo tem lactose, glúten e, potencialmente, vai direto para as nossas ancas.

A ida ao supermercado, então, nem se fala! Escolher ovos implica uma dissertação sobre a felicidade das galinhas e a origem geográfica dos seus antepassados, enquanto a secção do pão é ainda mais kafkiana: temos o low-carb, o sem glúten, o com chia, o fermentado à luz da lua cheia, enfim! No que a mim me diz respeito, já me aconteceu perder tanto tempo a escolher que, quando finalmente me decidi, o pão já tinha perdido a validade!

O Wi-Fi, esse feitiço moderno, merece um capítulo à parte nesta nossa epopeia stressante. É fascinante, senão assustador, observar como uma família portuguesa aparentemente funcional – outrora capaz de sobreviver a ditaduras, revoluções e programas de domingo à tarde na RTP – se desintegra em meros 2,3 segundos sem Internet. O pai tenta desesperadamente ressuscitar o router, murmurando pragas que fariam corar até o mais experiente estivador da Ribeira. A mãe entra em modo pânico ao ver a sua importantíssima videoconferência congelar, ficando com uma expressão facial que é um misto de terror e obstipação intestinal. E as crianças? Essas pobres criaturas da era digital, vendo-se confrontadas com o horror do mundo offline, entram num estado catatónico que faria Nietzsche repensar toda a sua filosofia. “Deus está morto”, diria ele, “e foi o Wi-Fi que o matou”. Que stress!

No meio deste caos, há sempre um iluminado que sugere: “Faz mindfulness”. Como se fosse possível encontrar a paz interior na Praça do Comércio, cercado por tuk-tuks a buzinar, turistas perdidos a decifrar o mapa da cidade como se fosse o Código Da Vinci, e pombos claramente com stress pós-traumático, após anos de perseguição por crianças hiperativas e turistas armados com “selfie sticks”.

E claro, não basta estarmos cansados. Temos de glorificar o cansaço e proclamá-lo ao mundo inteiro nas redes sociais, porque já não nos chega chatear apenas quem está à nossa volta. “Estou tão exausto #exaustão #blessed #gratidão”, escrevemos, enquanto nos perguntamos, se esta publicação, vai ter mais likes do que a foto do pequeno-almoço vegan que postámos há cinco minutos. Que stress!

Se Fernando Pessoa fosse vivo, o Álvaro de Campos provavelmente estaria num retiro de mindfulness em Sintra, enquanto o Ricardo Reis discutiria no Zoom o rebranding da crise existencial do grupo. “Oh Campos, vê lá se alinhas os chakras antes de vires debater a mecânica do universo!” E, claro, o próprio Pessoa estaria a publicar frases enigmáticas no Instagram, enquanto o Tony Robbins, que entretanto se juntou à festa, vendia mais um curso de desenvolvimento pessoal por 999 euros. Triste, mas com milhões de seguidores.

Portanto, caros leitores, da próxima vez que sentirem a necessidade imperiosa de anunciar ao mundo o vosso estado de exaustão, parem e reflitam: estão mesmo cansados, ou é apenas o reflexo pavloviano do português moderno?

Se for a segunda hipótese, aceitem o vosso lugar nesta grande comédia do quotidiano. Se for a primeira, bem… comam um pastel de nata. Não resolve o burnout, mas por uns momentos faz-nos esquecer que vivemos num país onde o conceito de pontualidade é tão flexível quanto a definição de “já almoço”.

Agora, se me permitem, vou fechar o computador. Estou muito cansado. Faço tudo aqui em casa!

Nota: Este artigo foi escrito sob os efeitos de café em excesso, ansiedade crónica e uma constante sensação de que devia estar a fazer algo mais produtivo, como reclamar nas redes sociais sobre o estado do país.

P.S.: Se está a ler isto durante uma reunião de Zoom, saiba que não está sozinho. Estamos todos unidos na luta contra o mute que falha sempre quando não deve. Que o Wi-Fi esteja sempre convosco, e que os vossos colegas nunca percebam que estão de pijama da cintura para baixo.