A CNN tem um programa chamado Contrapoder que, paradoxalmente, convidou um dia destes, para se juntar ao grupo de comentadores… um ministro! O ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte. Os programas de debate, mesmo os mais independentes, parece que precisam, para se credibilizarem, de contar de vez em quando com a presença de um governante.
Os comentadores residentes são Sérgio Sousa Pinto, João Marques de Almeida (que entrou há relativamente pouco tempo), e Ana Sá Lopes (que faz um bocadinho de Gata Borralheira, embora às vezes tenha observações certeiras onde se torna Cinderela).
Ora, precisamente nesse programa onde estava Pedro Duarte, o comentador Marques de Almeida criticou a autocensura dos jornalistas com pretextos ideológicos. E citou o caso do triplo homicídio da Penha de França, cometido por um individuo que a maioria da comunicação social omitiu ser de etnia cigana.
Estabeleceu-se um vivo diálogo – e Ana Sá Lopes disparou a dada altura esta frase: «É para não alimentar o racismo!».
Trabalhei no mesmo jornal com Ana Sá Lopes, em gabinetes contíguos, e posso afirmar que é uma jornalista séria. Tem as suas ideias, que não são exatamente as minhas, mas é uma pessoa intelectualmente séria. Profissional e pessoalmente honesta. Mas ao proferir aquela frase caiu numa armadilha em que cai muito boa gente.
Nos primeiros anos deste jornal, publiquei uma notícia sobre uma vaga de assaltos na Quinta da Marinha praticados por um gangue oriundo do Leste europeu. Um tempo depois, recebi uma carta de um organismo oficial informando-me que tinha incorrido em conduta criminosa, pois não era permitido noticiar a origem dos assaltantes.
Senti uma profunda indignação, peguei na caneta e redigi uma carta onde sinteticamente dizia que aquela era uma informação relevante, que os leitores tinham o direito de a conhecer, e me recusava a cumprir a dita lei. Nunca recebi resposta a essa carta.
Não sei como a lei é neste momento, mas mantenho a mesma posição: sempre que há desacatos, crimes, vandalismo, etc., os cidadãos têm o direito de saber quem os praticou: se foram homens ou mulheres, novos ou velhos, portugueses ou estrangeiros, atuando isoladamente ou em bando.
E mais: têm o direito de saber se se tratou de um caso isolado ou de um problema recorrente com um determinado grupo – seja de portugueses ou de imigrantes, de cidadãos do Leste ou de ciganos.
Omitir informação é sempre mau. Seja em nome daquilo que for.
Sem ir aos estafados exemplos do tempo de Salazar, pensemos na URSS. Havia uma censura. Em nome de quê? Da preservação do socialismo, para evitar os ataques do capitalismo. A argumentação era razoável: estando o Ocidente e o Leste europeu em guerra, ainda que fria, as autoridades da União Soviética não podiam deixar passar notícias que objetivamente favoreciam o capitalismo.
Quem podia contestar esta lógica? Não era verdade que o capitalismo visava destruir o comunismo? Deviam os comunistas ser tão ingénuos que deixassem publicar informação que objetivamente minava o sistema comunista?
Aqui havia apenas um senão: se o comunismo era assim tão bom, tão perfeito, tão superior, não tinha de temer o confronto com outros modelos de sociedade. A verdade viria à tona mais tarde – e o comunismo caiu como um castelo de cartas. E ninguém hoje quer voltar ao passado.
O jornalismo não pode ter medo da verdade nem deve fazer cálculos políticos. Quando começamos a pensar que não podemos publicar isto porque favorece o grupo A ou B, que não podemos publicar aquilo porque favorece o grupo C, está tudo estragado. Um jornalista que aja assim deixa de fazer jornalismo e passa a fazer propaganda: só publica as notícias que servem os objetivos que considera ‘justos’. Omite o resto. Considerando o racismo ‘injusto’, elimina as notícias que a seu ver o favorecem.
É este o princípio da censura. Ela é sempre feita em nome de um ‘objetivo superior’, de uma ‘causa nobre’.
Durante os mais de 30 anos em que dirigi jornais, segui o seguinte lema que usei um dia como título de um editorial: Este jornal não guarda notícias na gaveta. E fiz sempre por respeitar este princípio, mesmo em situações muito difíceis.
Termino como comecei: Ana Sá Lopes é uma jornalista séria e aquela frase saiu-lhe sem pensar. Se tivesse refletido um pouco mais, dar-me-ia certamente razão. Omitir uma informação relevante ‘para não alimentar o racismo’ é objetivamente censura. Ora, sabe-se como a censura começa mas nunca se sabe como acaba.