‘Em relação à morte de Odair sabemos muito pouco e há versões contraditórias’

Carlos Simões dirige Academia Johnson que trabalha com crianças e jovens no Bairro do Zambujal, Alerta para a tensão social e avisa que haverá mais tumultos se nada for feito, como o regresso do policiamento de proximidade.

A Academia Johnson trabalha no Bairro do Zambujal, onde residia Odair Moniz, morto esta semana por um agente da PSP, o que deu origem aos tumultos que se espalharem pela Área Metropolitana de Lisboa. Através do acompanhamento personalizado de crianças e jovens, esta academia tem como fim «transformar vidas, oferecendo oportunidades e ferramentas para que as crianças e jovens construam um futuro mais próspero e feliz» . Para isso, desde a sua fundação ajudam a promover a educação de forma a prevenir situações de risco nas quais vivem as crianças e jovens destes bairros. Mentorias, acompanhamento escolar, desporto e envolvimento das famílias em ações que retirem os mais novos das ruas é o grande desafio. Com dezenas de empresas e entidades públicas como patrocinadores em várias valências, contam também com voluntariado para levarem a cabo esta missão que nasceu por iniciativa do já falecido Johnson Semedo, são-tomense que cresceu na Cova da Moura e com apenas nove anos entrou no mundo da droga. O fundador desta instituição esteve preso 10 anos devido a «drogas, furtos, delinquência, criminalidade. Sem sonhos, sem objetivos, sem regras», testemunhou várias vezes o próprio. Por fim, reabilitou-se e iniciou o seu projeto na Cova da Moura em 2014, inspirando os jovens com a sua própria experiência e fundando a Academia Johnson. Morreu em 2022, por doença prolongada, deixando o seu legado à equipar que o acompanhou desde o início. Um deles é o psicólogo Carlos Neves Simões. «Somos aquilo que fazemos» é o lema deste projeto. 213 crianças e jovens acompanhados e 94,3% de taxa de sucesso escolar são os números dos resultados.

O que se passou na Cova na Moura


Não me revejo absolutamente nada naquilo que está a ser dito nos tabloids e naquilo que está a ser o convite para se olhar para aquilo que está a acontecer no Zambujal e nos restantes bairros. Ao olharmos só para isto, é um convite para ignorar um fenómenos muito mais alargado, que tem décadas no nosso país, e que politicamente tem sido uma distração muito grande e uma cumplicidade muito grande com aquilo que está a acontecer. Há uma espécie de pressão anunciada que tem décadas no nosso país. E essa pressão, pelos sucessivos governos, foi sempre perversamente ignorada. Portanto, agora pagamos caro. Despertarmos agora com uma angústia para este tipo de questões e ignorar que são um sinal daquilo que não tem sido feito é continuarmos a perpetuar a linguagem da exclusão, da pobreza ou da marginalidade.

Este pode ser o momento para se fazer essa análise?


Sim, de se aproveitar este momento para se repensar o que não foi feito e também para repensar as coisas boas que foram feitas, como aquilo que se fez no início deste século. Há mais de vinte anos houve um projeto em Portugal, nomeadamente nos bairros mais problemáticos, como na Cova da Moura, que foi o policiamento de proximidade. Foi uma solução fantástica porque ajudou a mudança das comunidades como ajudou também a mudança das organizações. Nessa altura deu-se uma diminuição clara da delinquência, do tráfego, famílias que retomaram a atividade escolar, porque havia muitas crianças que não iam à escola. No início do século isso foi feito.

E acabou porquê?


Estreiteza do pensamento político. A justificação ou desculpa foi que não havia ativos humanos suficientes. E pagamos hoje na Justiça muito mais aquilo que podíamos ter poupado na componente social e na componente da educação. Isto é absolutamente inqualificável.

Qual é na sua opinião a origem concreta destes distúrbios?


Têm a ver com o sentimento coletivo de pessoas que se sentem há anos absolutamente invisíveis, sem voz, desconsideradas. É natural que numa situação destas, as pulsões e as emoções mais primárias se manifestem porque para alguns deles é a única forma de dizerem nós existimos, estamos aqui. Obviamente que é incorreto e inaceitável o que está a acontecer de ataque à ordem pública e do bem estar comum.


Acha que a motivação é justificável, mas a forma é a errada. É isso?


A motivação é um sinal daquilo que não tem sido feito e daquilo que está por fazer naquilo que eu chamaria de espaços proibidos de cada cidade, onde não somos convidados. Há manifestações de angústia e sofrimento de muitas pessoas. Mas há, claramente, oportunismos. De ontem para hoje as tentativas até de algumas lideranças partidárias de falarem connosco e de terem voz numa lógica só de criar e ampliar o alarme social, tomaram logo voz. O caminho não pode ser por aí e isso incomoda-me muito. É perverso.

Mas estes distúrbios prejudicam em primeiro lugar as comunidades dos próprios bairros. Como explica isto?


As pessoas defendem-se muito. A apropriação do espaço público é muito difícil de fazer. Há cerca de 15 anos nós tínhamos pessoas que não iam ao centro da cidade há mais de dez anos. Adultos. Porque a perceção que se tem do espaço público envolvente é do espaço proibido, é de um espaço que não é acessível. A sua perceção é de que não fazem parte, estão excluídos. É um mecanismo inconsciente e por isso é imediatamente disparado e as pessoas reagem deste modo. E na comunidade porque ela é considerada protetora: é lá que as pessoas se sentem seguras aconteça o que acontecer. Claro que há o aproveitamento nestes contextos de pessoas que vivem na delinquência e em associações mais organizadas e que desse modo também se manifestam numa tentativa de liderarem.

São esses que estão a liderar?


Não, não me parece. As emoções mais primárias só precisam de um gatilho, estejam elas em situação de mais vulnerabilidade quer não estejam. Aqui, este mecanismo também está presente, só que há um efeito de contágio e uma voz que se multiplica. Com algumas ações, dá nos tumultos, dá na desorganização, na conflitualidade e dá origem a que nos concentremos apenas nas manifestações esquecendo que em 90% das situações que estão por trás são situações que têm a ver com uma história onde há um setor social e político que as marcam em profundidade.

Sendo que os protagonistas são os mais jovens.


Os mais jovens em relação ao comportamento, mas os mais velhos partilham os mesmos sentimentos. Estão cansados e sem esperança, mas não são jovens e não correm o risco de se exporem. Mas toda a comunidade partilha e apoia esta exaltação. Por isso é que em diferentes geografias houve adesão ao que se passou no Zambujal, para mostrar que há um fenómeno mais alargado de exclusão e indiferença.

Mas o debate está a ser feito como apenas um caso de justiça.


Sim, porque aproveita a todos: políticos, comunicação social, dos comentadores, a própria comunidade, ativistas, etc. Há uma cumplicidade entre todos. Não se coloca em cima da mesa os bons projetos que tivemos no início deste século. O problema não é sim ou não, se é criminoso ou não. Assim impede-se que o debate e a decisão vá mais longe. No entanto, esta é uma oportunidade de repensarmos daquilo que foi e não foi feito. Se não se fizer nada haveremos de ter outros cenários parecidos ou piores.

O que defende é que a polícia vá para os bairros mas a grande contestação é contra a polícia acusada de repressão.


A polícia como organização é vital. Lembro-me de polícias que abraçaram a nossa causa e conseguimos fazer autêntica magia na altura. Chegámos a sentarmo-nos à mesa com traficantes, delinquentes, foi único e ainda durou dois ou três anos até que acabou. O nosso país, mais uma vez, não foi capaz de estar à altura de dar continuidade a estratégias boas.

É real a repressão da polícia?


Há esse sentimento, há essa perceção. É importante alterá-lo para não olharmos para a polícia como uma ameaça. E isso é inquietante, preocupante e perigoso.

E no caso concreto de Odair Moniz?


Não posso dizer muito sobre isso em rigor da verdade. Apesar de já ter falado com pessoas muito próximas, mas estamos a falar ainda de informações que são contraditórias. Seria apenas opinar e isso não é correto. A família está absolutamente indignada pelo que aconteceu e que a PSP contraria. Em relação ao contexto da morte – antes, durante e depois – também sabemos muito pouco e há versões contraditórias.

O que aconselha?


Que se repense e que se construa em conjunto. E começa por coisas elementares pela escola, pela presença nas comunidades. Há famílias que no Inverno ao dia 12 já não têm gás, famílias que cozinham arroz nas escadas dos prédios para os vizinhos. Isto são sofrimentos incríveis. E todo este sofrimento é antes de tudo aproveitado para proveito que não é da comunidade. Há uma coisa que me recuso a fazer: que me dirijam a uma reflexão do sim ou não, crime ou não.