O país teria de agarrar-se até ao limite aos seus complexos se quisesse negar o encanto que lhe provocou este homem. No fim, da sensação de sermos quem somos poderá sobreviver apenas essa ponta de vergonha, mas só um perfeito cínico recusará admitir que Marco Paulo foi o ídolo que emprestou o tom e o gosto à década de 80, num período em que a expressão de um gosto popular, mesmo debaixo do desprezo dos snobs, se mostrou radiante, abandonando a vergonha para se render a um romantismo descarado, espontâneo e animador. Em certo sentido, Marco Paulo definiu a estética que, mesmo passados 40 anos, continua a cativar as audiências, e qualquer fenómeno de popularidade que se tenha seguido não pode deixar de aprender alguma coisa com a receita original.
Hoje, a sua qualidade e alcance vocal são já unanimemente reconhecidos, bem como a capacidade que teve de impor a música ligeira portuguesa por cima dos ditados culturais de uma elite que sempre gostou de inventar o povo à sua imagem, produzindo fenómenos artificiais e pretensiosos apenas para fazer valer as suas aspirações. Assim, quando os mandarins ainda procuravam ditar a imagem que Portugal tinha de si mesmo barrando-lhe o acesso à televisão, o que Marco Paulo fez foi calcorrear o país, chegando a cantar em circos e em palcos improvisados, muitas vezes em cima de caixotes, e isto porque o seu apelo era tão evidente que nunca teve de envergonhar-se, cabendo-lhe definir os contornos da insurreição do quadro do espetáculo entre nós.
Durante uns bons anos, enquanto a classe esclarecida se conformava à democracia, foi prevalecendo a tese de que era necessário proteger o público de si mesmo, das suas paixões, dos seus ímpetos e fervores. Marco Paulo surgia face a esse quadro sem qualquer rebuço, manifestando uma exuberância e um respeito pelo seu público, estabelecendo uma reciprocidade que fez depressa dele um verdadeiro ícone dos novos tempos, alguém que veio dizer aos portugueses que não havia por que continuarem a carregar o embaraço e a sentirem a necessidade de pedir autorização para sentir algum entusiasmo, ficando depois obrigados a cumprir alguma forma de penitência. E, talvez por isso mesmo, seria agora importante não dissolver o seu legado assinalando como acabou por ser acarinhado por todos, especialmente se considerarmos que essas tréguas resultaram em grande medida pelo facto de o seu fulgor criativo ter sido coartado devido ao cerco que lhe fez o cancro, aparecendo cada vez mais fragilizado nos últimos largos anos. Se encontrou por fim algum consenso, este cantor que perdeu a vida na quinta-feira, aos 79 anos, e viu o seu protagonismo reconhecido não apenas no nacional-cançonetismo mas num imaginário popular que tocou várias gerações, deve ser lembrado sobretudo pelo repúdio que enfrentou. O que é decisivo no momento em que nos despedimos dele é homenagear a força com que foi impondo a sua presença, singrando face ao desdém daqueles que o rebaixavam apontando-o como o «cantor das sopeiras». Se o seu triunfo significa alguma coisa é pela lição de dignidade com que enfrentou essa campanha que procurava apoucá-lo e menosprezar os seus feitos.
Além de ter dominado as tabelas ao longo de 30 anos, enchendo salas de concertos por todo o país – fosse nos grandes palcos, nos Coliseus de Lisboa e do Porto ou na Altice Arena, fosse nos mais modestos, continuando a apresentar-se nas festas populares e arraiais -, talvez tenha pressentido como ao seu público era vedada a hipótese de viver em harmonia consigo mesmo, uma vez que a elite sempre dependeu mais do desprezo pelas classes populares do que propriamente de uma capacidade de transmitir verdadeiros valores culturais ou intelectuais. No fundo, se o país não consegue criar uma imagem positiva de si, este cantor esteve mais perto do que ninguém de fazer a denúncia dessa polarização esquizofrénica da nossa cultura, em que a classe que se julga esclarecida tem sobretudo como valor de diferenciação o seu desprezo pelo gosto popular.
A vingança chegaria na forma daquelas canções que tomavam conta do ouvido sem pedir licença. O horror de tantos começa precisamente por se darem conta de que não lhes era possível escudarem-se face ao contágio. Cada um tinha de procurar abrigo, esconder-se para não ser apanhado em flagrante e em público a vibrar com aquelas harmonias e ritmos. Ainda hoje, se alguma coluna sem qualquer aviso atirar sobre nós um daqueles êxitos como Eu tenho dois amores ou Joana, mesmo o Maravilhoso coração ou o Sempre que brilha o sol, para não falar do Ninguém, ninguém ou do Taras e manias, ficamos imediatamente em apuros. São temas que anavalham o ouvinte à traição. Mesmo que não se goste, há certas horas em que a resistência se mostra fútil, basta um atraso no render da guarda estética e um tipo apanha com uma frase daquela e daquele ritmo e fica sujeito à infeção.
Mas alguma coisa se perdeu à medida que, coberta pela patine do tempo, a imagem do ídolo que vinha da província, com a farta cabeleira, os densos caracóis, e o microfone a saltar de uma mão para a outra, começou a gozar do prestígio que a nostalgia sempre conquista. Alguma coisa se perdeu daquilo que chegou a parecer uma ameaça ao bom gosto, provocando a tentação de o denegrir, de o cobrir pela má-língua, uma vez que, como nos disse Eduardo Lourenço, os portugueses não sabem outra forma de viver senão em permanente representação, «tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou coletivo».
Ora, Marco Paulo autorizou aquela parte do país que estava exausta dessa encenação, desse dever de reserva e de todas as inibições que sentia serem-lhe impostas. E em 2022, foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, esse ser que triunfou por cultivar uma postura camaleónica, sem deixar que a etiqueta social limitasse o seu alcance. Ao conferir aquela distinção que assinalava os 50 anos de carreira do mais marcante cantor popular português, Marcelo corporizava já esse desajustamento visceral de um país consigo mesmo. Já Marco Paulo dava mais outra prova da sua desafetada alegria: «Nunca pensei que aquela criança que nasceu no Alentejo, numa vila tão pequenina chamada Mourão, um dia pudesse entrar neste palácio lindíssimo e ser condecorado pelo senhor Presidente da República.»