O Matuto gosta de táxis. Quando o Matuto era Matutinho, lá na aldeia, os táxis eram chamados “carros de praça”. Andar de “carro de praça” sempre suscitava suspiros invejosos nos outros miúdos. O Matutinho adorava a sensação do vento golpeando o cabelo. Olhos topando a estrela do Mercedes. Os estofos do banco corrido e a manete de mudanças no volante. Velocímetro vertical que parecia uma telefonia.
Já Matuto matulão, deu-se a necessidade de apanhar um “Uber”. A gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, inseriu as informações no aplicativo. Depois dum ‘pling’ metálico, uma mancha movia-se no écran (tela, no Brasil, por favor) do telemóvel (celular, no Brasil, por favor). “Daqui a 5 minutos, está aqui” – anunciou Dona Sirlei. O Matuto boquiaberto com os caminhos pouco sinuosos da tecnologia. É tudo previsível! O Uber chega monitorado por chofer de camisa aos quadradinhos e um boné, bem Português, na cabeça. O Matuto simpatizou com o moço. No cimo duma ladeira o chofer aponta com o boné um senhor de andar sorumbático: “aquele é o melhor professor de guitarra da cidade”. O Matuto ficou impressionado com a informação. A cidade que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio não é conhecida por albergar músicos. “Você é músico” – pergunta o Matuto. “Sim, a música é a minha paixão. O Uber é o meu ganha pão”. Um chofer que entende de música – matutou o Matuto.
Nesse momento o Matuto foi garimpar na urna das recordações. A cidade era a Lisboa dos anos 90. A necessidade: apanhar um taxi. Local: Santa Apolónia. Destino: Rua Artilharia 1 (cruzamento no topo da rua que vai da Praça do Marquês às Amoreiras). O Matuto entra lesto no taxi que arranca colando o Matuto ao assento. Na rádio Kenny Loggins cantando “Danger Zone”. Ritmo alucinante, baixo batucando nos altifalantes, decibéis vibrando. O motorista guiava como se fosse piloto do “Topgun”. Óculos Ray-ban à Tom Cruise. “Não precisa de ir tão rápido” – sugeriu cauteloso o Matuto. “Ah, é preciso, sim! Este carro está ligado à música. Aqui dançamos conforme a música”. “Ride into the danger zone”… rugia a rádio. O Tejo não fluía, corria do lado esquerdo. O Matuto ficou aliviado quando entraram na Praça do Comércio ao som dos The Cars cantando “who’s gonna drive you home, Tonight”. A velocidade diminuiu e a tranquilidade reinou no habitáculo do taxi. O Matuto apreciou as ruas a regra e esquadro da Baixa Pombalina. “Every time you go away, you take a piece of me with you” – entoava Paul Young, na radio. O motorista dos Ray-ban, ronronava: “que música romântica”! O Matuto recostou-se mais relaxado. Eis que o “Fuel” dos Metallica invade as ondas radiofónicas: “gimme fuel, gimme fire, gimme that which I desire”. Volta o ritmo psicadélico. O motorista é possuído por uma adrenalina pura. O Matuto pelo puro medo. Avenida da Liberdade acima, o Matuto insinua: “ó homem, mude para música clássica”. Os olhos por detrás do Ray-ban, dardejam um pálido consentimento. Melindrado. Despeitado. Ressentido. Animal musical ferido. Entra uma ópera! A velocidade cai exponencialmente. O carro quase pára. “Bem, pode ir mais rápido” – contesta o Matuto. A Rotunda do Marquês a passo de caracol. “Não podemos! Estamos em moderato. Só quando entrarmos no allegro” – responde o taxista. “Misericórdia! Só me faltava um taxista amante do bel canto” – desabafa o Matuto. O ritmo operático aumenta. A velocidade do táxi sobe vertiginosamente. “É o allegro, é o allegro”! – explica entusiasta o maníaco musical. “Sim! Ma non troppo” – grita apavorado o Matuto. As mãos como garras engadanhadas no assento. Meu Deus, livrai-nos dos taxistas melómanos!