O Fonseca

Não posso deixar de recordar aqui um episódio que tu gostas sempre de ouvir sobre a morte do Mário, mais propriamente sobre o velório.

Querida avó,

Mário Castrim, teu marido, pai dos teus filhos, avô dos teus netos… já morreu há 22 anos.           

Tinha “apenas” 82 anos. No entanto, para os problemas de saúde que teve desde a infância, tal como na vida profissional, o Mário foi um lutador.

É curioso como, passadas duas décadas, muitos continuam a recordá-lo. Considerando que o seu desaparecimento empobreceu o panorama da comunicação social portuguesa.

Nas tertúlias que organizo, com os mais velhos, são bastantes os que o tratam por “Professor”. Vive nas memórias de muitos como «um profissional dedicado, fundador da crítica televisiva». Cada vez que falas dele, profissionalmente, contas-me que Mário Castrim irá «permanecer como uma referência para as gerações de críticos que têm surgindo».

Concordo contigo. Numa tertúlia houve alguém que comentou: «Nunca perdia as críticas do Mário Castrim. Como eu, muita gente também não as perdia. Eram comentadas por todo o lado onde houvesse gente que gostava de estar a par do que se passava na TV. Eram tempos de intervenção e de gente bonita por dentro e por fora». Outra disse: «Fui aluna do Prof. Mário. Por certo se estivesse entre nós, já se tinha recusado a ver alguns dos nossos canais televisivos». Como eu a entendo!

Ontem fiz algumas visitas guiadas à tua exposição, que esteve patente em Loures.

É impossível falar da tua vida e obra sem falar de Mário Castrim. Das dezenas de jovens interessados que fizeram imensas perguntas, houve um, que devia ser muito bom para fazer contas, que comentou «O marido da Alice já morreu. Se fosse vivo tinha 104 anos».

Ao que eu respondi: «Enquanto recordarmos as pessoas, elas nunca morrem! Quem deixou uma obra como o Mário Castrim permanecerá vivo».

Acredito que muitos deles tenham ido hoje às bibliotecas das escolas, ou à internet, descobrir mais sobre Mário Castrim, pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca.

Bjs

Querido neto,

O tempo passa, mas, felizmente, não nos apaga as memórias.

Recordo, como se fosse hoje, o dia em que entrei na redação do jornal e o vi pela primeira vez.  

Pensei ‘Esta é a vida que quero, a profissão que desejo e aquele é o homem que pretendo’. E assim foi!

Os que gostavam de televisão, de uma certa televisão, tiveram o privilégio de ter um Mário, dedicado à causa. Com ele sonhava-se uma televisão à altura das carências do país. Tão diferente daquilo que a televisão se tornou.

Foi professor, jornalista, escritor, dramaturgo, crítico literário. Mas a televisão foi o seu projeto de vida! Passava horas em frente à TV. Gostava de ensinar as pessoas a olhar para a televisão e saber julgar o que de lá saía.

O Mário era fiel às suas convicções e não escondia o ideal que tinha para o país e para a televisão.

Se hoje tenho cerca de uma centena de livros publicados, é graças ao que aprendi com ele.

Não posso deixar de recordar aqui um episódio que tu gostas sempre de ouvir sobre a morte do Mário, mais propriamente sobre o velório.

Às primeiras horas da manhã ligam-me do hospital a dizer que o meu marido tinha morrido. Fiquei parada, sentada no chão ao pé do telefone sem saber o que fazer. O meu filho vivia em Inglaterra, a minha filha estava como eu. Salvou-me o meu irmão que foi logo para o hospital e tratou de tudo. Escolheu fato, sapatos, tudo. Mas no meio daquilo tudo esqueceu-se de ver os bolsos do casaco. No meio do velório um telemóvel desata a tocar. Estava no bolso do casaco dele. Corro para lá, tiro-o e olho a ver quem estava a telefonar. Era um velho amigo nosso, que já não ligava há imenso tempo. De seu nome José de Deus. Mas que o Mário tinha gravado no telemóvel apenas como “Deus”. Eu olhei, sorri e murmurei «Já lá chegou».

Manuel Nunes da Fonseca, ficou conhecido como Mário Castrim. Até nós lá em casa nos esquecíamos do seu verdadeiro nome.

Bjs