Por esta altura, não há qualquer faceta nem um só ângulo que não tenha sido já explorado na inelutável aparição de Donald Trump na cena política norte-americana. Não há um só aspecto da sua persona que não tenha sido alvo de investigação e debate, e recentemente a questão da sua saúde mental e os sinais de alguma senilidade têm estado de forma constante sob o foco mediático, mas desde a sua inesperada vitória nas eleições de 2016 não tínhamos visto outra figura que tão bem ilustrasse como a máxima “o poder corrompe” está longe de ser uma metáfora.
Os alertas mais degradantes vieram muitas vezes daqueles que privaram com ele nos corredores do poder, inclusivamente dos mais destacados membros do seu executivo, e, se há muito recai sobre ele o qualificativo de “mentiroso patológico”, se muitas vezes os especialistas se detêm com alguma minúcia tentando dilucidar se se trata de um comportamento compulsivo ou se ele exibe os traços de um celerado mitomaníaco, sendo constitutivamente incapaz de distinguir a verdade das convenientes ficções que vai produzindo, tem vindo a assinalar-se como, numa sociedade onde a palavra tem ainda algum peso, e se deposita alguma confiança naquilo que nos dizemos, mentir da forma como Trump o faz é um verdadeiro superpoder. Pelo menos, até o discurso se tornar um regime inteiramente frívolo, e se banalizar a ideia de que fomos transferidos para uma sociedade de vigaristas e trapaceiros, deixando de se entender que o princípio de boa-fé ainda vigora nas relações que mantemos no dia-a-dia.
Por esta altura, os cínicos estarão já a assumir aquela pose enfática para nos vir lembrar que essa forma de desonestidade crónica e de narcisismo impante são historicamente traços característicos da vida política. Mas, se é certo que em anos recentes o Grand Old Party (GOP) tem vindo a adoptar como seu mote a ideia de que não há qualquer desvantagem em construir uma campanha na base de mentiras, é evidente que a partir de um certo grau se ultrapassa a hipérbole ou a distorção, e se alcança um nível intolerável de paranoia e mania, que degrada inteiramente a noção de verdade ou até, a um nível mais celular, a própria linguagem de que nos servimos quotidianamente. E voltando a Trump, é bom lembrar como, depois de ele dominar as primárias do partido republicano, à medida que se estruturava ao seu redor uma equipa integrando alguns dos mais experientes assessores e estrategas políticos conservadores, cedo todos se deram conta de que os seus esforços no sentido de tentar fazer dele um candidato mais próximo dos moldes convencionais seriam fúteis. Trump nunca seria outra coisa além daquela figura clownesca que, por um efeito de ironia histórica, parecia estar perfeitamente alinhado com os sentimentos de toda uma classe de gente que odiava a forma como se tem feito política em Washington nas últimas décadas, e que exigia, não propriamente um herói ou um carismático líder, mas alguém que pudesse ilustrar uma súbita inversão, um movimento justiceiro que triunfasse de forma calamitosa sobre aquela imagem severa da deslealdade que ligam à cena política. Em vez desse enredo nauseante e quase esotérico da política, como resultado de uma intrincada rede de interesses em conflito e que se jogam num plano altamente burocrático e puramente inefável para a maioria dos eleitores, estes pareciam dispostos a abdicar de todas as noções convencionais, desejosos de ver emergir uma figura capaz de actuar corrosivamente sobre esse plano e oferecer uma série quantitativa de compensações, de sobressaltos, num mimodrama capaz de lhes transmitir essa força dos gestos que viram tudo do avesso.
Para se perceber melhor o apelo extraordinário que Trump tem, sobretudo, para esses cidadãos que se sentem excluídos e desafectados do habitual e tedioso regime da política dos nossos dias, é preciso pensar num fenómeno como o do wrestling, pois é a partir de uma geral indiferença do público face àquilo que ocorre naquela arena que emerge este lutador sem qualquer tipo de escrúpulos e que devolve o elemento crucial à cena política, com todos esses excessos que fazem desta um espectáculo e não apenas mais um espaço de rivalidades que acabam por se dissolver entre si. Como nos diz Roland Barthes no ensaio que dedica a esta modalidade que, nos últimos anos, cultivou um regime mitológico assumindo, hoje, prevalência no imaginário colectivo norte-americano, sobrepondo-se até àquele que foi popularizado pelos filmes western, o sentido natural do wrestling é o da amplificação retórica: “a ênfase das paixões, o renovar dos paroxismos, a exasperação das réplicas só podem desembocar naturalmente na mais barroca das confusões”.
No volume que dedica a uma série de “Mitologias”, Barthes fala-nos de um profano regime operático que propicia a orgia dos maus sentimentos, e em que o público, humilhado ao ponto de se identificar cada vez mais com os foras-da-lei, clama por um herói essencialmente instável, que só admite as regras quando lhe são favoráveis e viola a continuidade formal das atitudes. “Um homem imprevisível, logo um associal. Ele refugia-se atrás da lei quando julga que ela lhe é propícia e trai-a quando isso lhe convém; tão depressa nega o limite formal da arena, e continua a zurzir um adversário protegido legalmente pelas cordas, como estabelece esse limite e reclama a protecção que uns momentos antes não respeitava.”
A mais elegante das mentes ligadas ao movimento de crítica francês conhecido como estruturalismo formula, assim, de forma quase profética uma visão do destino político que nos espera e, em particular, oferece-nos um retrato decisivo de Trump, essa figura que tem gerado tantas sequelas, tantos émulos ou imitadores e que, com o seu comportamento inconsequente, põe o público fora de si, pois este já não está interessado em avaliar a virtude dos candidatos, nem tem o menor interesse em verificar a transgressão das pálidas regras oficiais, mas o que não admite é que este falhe o sentido da vingança, o exercício da penalidade.
Barthes estava longe de imaginar todo o efeito apoteótico e, talvez, mesmo catártico, que este fenómeno viria a ganhar já depois da sua morte quando notou que na América o wrestling constitui “uma espécie de figuração do combate mitológico entre o Bem e o Mal (de natureza parapolítica, sendo o mau lutador sempre tido por um Vermelho)”. Depois dos comunistas seguir-se-iam-se outras tantas figurações do Mal, sendo este sempre o estrangeiro, o bárbaro que pretende pôr em causa o estilo de vida americano.
Aquilo que o público vai buscar a este modo excessivo do espectáculo é esse vigor das essencializações, aquela ênfase dos teatros antigos, sendo os lutadores avaliados pela sua capacidade de “inflectir os episódios espontâneos do combate no sentido da imagem que o público faz dos grandes temas maravilhosos da sua mitologia”. Barthes adianta que um lutador pode até irritar e provocar asco à audiência, o que não pode é decepcionar, uma vez que é chamado a executar até ao fim, e encarnando aquela solidificação progressiva dos signos, o que o público lhe pede. Assim, como ele esclarece, nada nesta modalidade existe senão em totalidade, não há nenhum elemento de nuance ou subtileza, cada símbolo, cada alusão é transmitida de forma exaustiva, não deixando nada na penumbra. O gesto elimina todos os sentidos parasitas e apresenta cerimonialmente ao público uma significação pura e inteira, redonda como uma Natureza. “Esta ênfase não é nada mais do que a imagem popular e ancestral da inteligibilidade perfeita do real. O que é mimado pelo wrestling é, pois, uma inteligência ideal das coisas, a euforia dos homens, erguidos um instante acima da ambiguidade constitutiva das situações quotidianas e instalados na visão panorâmica de uma Natureza unívoca, em que os signos corresponderiam enfim às causas, sem obstáculos, sem fugas nem contradições.”
É isto o que Trump faz pelo cidadão norte-americano que, hoje, não apenas deixou de compreender as minudências do enredo ou mesmo os signos da política ou até, em muitos casos, os seus traços gerais, que não apenas se alheou mas chega a sentir-se humilhado pela densidade dessa atmosfera, pela complexidade da sua linguagem, repudiando-a como o próprio caos. O que Trump soube fazer à vida política foi transmutá-la através do poder do Espectáculo e do Culto, devolvê-la a um quadro simplificado, a uma arena que força os signos a um exercício de clareza obsedante.
Como refere Barthes, é no ring e lá bem no fundo da sua voluntária ignomínia que os lutadores podem emergir como deuses, “porque são, por instantes, a chave que abre a Natureza, o gesto que separa o Bem do Mal e arranca o véu do rosto de uma Justiça enfim inteligível”. Assim, aquilo que Trump faz pelo seu eleitorado é convertê-lo decididamente em público, oferecendo-lhe o sacrifício das convenções políticas através de um efeito de degradação e de uma série de inversões dos seus pressupostos, e, a partir daí, do eleitor não se espera que se submeta e se limite a dar a sua confiança a um partido ou a um candidato, mas que possa participar num desses espectáculos cujo sentido é elevar os ânimos até ao fervor. E se há quem persista no erro de procurar denunciar todo aquele efeito de representação, acusando o wrestling de ser um desporto falseado, são estes mesmos os que se mostram incapazes de beliscar aquilo que Trump trouxe para a política. Ao indignarem-se com as suas declarações ignominiosas, com as suas fanfarronadas, com toda a categoria de ofensas e com o seu desprezo pela verdade, não compreendem como ao defender os supostos valores tradicionais, aquilo que ele realmente faz pelo seu público é oferecer “uma leitura imediata dos sentidos justapostos, sem que seja necessário relacioná-los”.
Pode ser tudo muito básico, pode reduzir todos os elementos da realidade a uma imagem momentânea com vista a despertar paixões e ódios, mas o facto é que também os seus adversários se sentem compelidos a assumir posições vigorosas face a ele. E é certo que Kamala Harris nunca seria uma alternativa formidável, sendo antes óbvio que, se ganhar as eleições, será apenas por não ser Trump. De resto, como vinca Barthes, a função do lutador de wrestling não é a de vencer, mas sim a de executar exactamente os gestos que dele se esperam. “Diz-se que o judo contém uma parte secreta de simbólico; mesmo na eficiência, trata-se de gestos sóbrios, precisos mas curtos, desenhados com rigor mas com um traço sem volume. O wrestling, pelo contrário, propõe gestos excessivos, explorados até ao paroxismo na sua significação.”
Todo o entusiasmo que Harris tenha conseguido gerar é apenas um efeito secundário da enorme antipatia que Trump gera. No fundo, a política havia-se tornado qualquer coisa enfadonha, mas agora o mundo inteiro está a seguir compulsivamente as eleições norte-americanas. E é bem sabido que o que quer que venha a ocorrer ali terá repercussões por toda a parte, e influenciará o modo de fazer política em vários países.
Outro aspecto que Barthes destaca é a correspondência que há entre o wrestling e o teatro antigo, notando como a mola interior, a língua e os acessórios (máscaras e coturnos) concorriam para a explicação exageradamente visível de uma Necessidade. “O gesto do jogador de wrestling vencido, ao significar ao mundo uma derrota que, bem longe de ocultar, ele acentua e aguenta à maneira de uma suspensão de órgão, corresponde à máscara antiga, encarregada de significar o tom trágico do espectáculo. No wrestling, como nos teatros antigos, ninguém tem vergonha da sua dor, as pessoas sabem chorar, têm o gosto das lágrimas.” Ora, Trump consegue ser ao mesmo tempo um pedante imbecil, e precisamente por encarnar para alguns aquela figura absolutamente desprezível, com toda a sua fatuidade grotesca, torna-se para outros uma representação fabulosa de toda a sua humilhação e dor às mãos desse mesmo regime, tão virtuoso por um lado, quanto impiedoso por outro. Ao recusar a derrota nas eleições de 2020, ao insistir que a vitória lhe foi roubada, é aí que Trump se propõe como uma espécie de mártir, e mostra-se ao público nessa representação própria do wrestling, exibindo cada golpe que lhe é aplicado com toda a amplificação das máscaras trágicas.
Logo no arranque do livro que publicou em 2015 – “Crippled America: How to Make America Great Again” –, na altura em que procurava obter a nomeação enquanto candidato republicano na corrida à Casa Branca, começava por justificar a fotografia que escolhera para ilustrar a capa do livro. “Alguns leitores talvez se ponham a indagar por que razão a fotografia que escolhemos para a capa deste livro tem um ar tão irado e tão feroz”, diz Trump. E logo se apressa a esclarecer que tinham-lhe sido tiradas outras fotografias em que estava uma estampa, ao nível daquela que agraciou a capa do seu primeiro livro de memórias, “The Art of the Deal”, fotografias em que, segundo ele, transparece como é boa pessoa, uma nobreza que ele reclama várias vezes ao longo do livro. Trump adianta que a família lhe implorou que escolhesse uma dessas fotografias, mas que ele quis mostrar esse seu lado de forma a reflectir “a raiva e a infelicidade profunda que sinto”. No fundo, Trump quis expor aquela figura excessiva do sofrimento de forma a poder relacionar-se com o eleitorado que esperava atrair. E o seu rosto, aquele que ao longo de mais de uma década entrou pelas casas dos norte-americanos nas tantas temporadas do reality show The Aprentice, depois de ser celebrado como a efígie do sucesso nos negócios, podia agora cumprir essa derradeira metamorfose. Assim, “como uma Pietà primitiva, ele dava a ver o seu rosto exageradamente deformado por uma aflição intolerável”. Mas se aquele programa televisivo acabou por reforçar e exagerar os mitos que Trump sempre foi construindo sobre si próprio, forjando a imagem de um magnata do imobiliário dotado de uma tenacidade espantosa, transformando-se, como alguns observaram, na mais longa campanha alguma vez desenhada a favor de um candidato político, aquele que talvez fosse o verdadeiro trunfo de Donald Trump poucas vezes lhe foi reconhecido: o seu apurado faro para detectar e explorar a fraqueza.
Como refere Martin Amis num perfil que fez dele para a Harper’s, “quando andava à procura de um hotel antigo que pudesse comprar na baixa nova-iorquina, Trump rejeitou o Biltmore, o Barclay e o Roosevelt por serem ‘pelo menos moderadamente bem sucedidos’, optando pelo ‘único com problemas reais’, o Commodore, que ele podia pintar como ‘um hotel falhado num bairro decadente’ e assim baixar o preço. Da mesma forma, a sua longa e aparentemente desesperada campanha para conseguir a Bonwit Teller, a loja e o edifício, ganhou fôlego quando ficou a saber que a empresa-mãe começou ‘a ter problemas financeiros muito graves’. Assim consegue a Bonwit Teller.” Amis admite que talvez seja esse o trunfo que o define: “um faro crocodiliano para presas inertes e, de preferência, moribundas”.
Terá sido esse instinto que o guiava nas suas apostas no imobiliário e que o fez precipitar-se sempre que uma entidade já não era suficientemente forte ou ágil para escapar à predação, terá sido isso que o fez virar-se para “aquele elefante branco, o Grand Old Party, cujos barões assalariados nem deram pelo seu cerco, mesmo quando já estava no meio deles, acabando por fazer daquelas ruínas o seu domínio”. E Amis levava mais longe a sua cogitação, e sugeria que talvez o passo seguinte fosse provar que a própria democracia norte-americana era agora essa presa inerte que não saberia como escapar à sua investida.
Trump nunca precisou de outra coisa senão de reconhecer que a expressão mais apaixonada da multidão não emerge já a partir dos seus juízos, mas sim dessa zona mais profunda, a dos seus humores. E não há nada mais fácil do que cativar uma audiência que está farta de tentar seguir a fastidiosa intriga que lhe submetem diariamente, com os seus personagens obtusos, apagados, um bando de lacaios mais ou menos astuciosos, mas sem nada daquela teatralidade peremptória da Comédia italiana. Ao estender à política esse regime de significação que próprio do mais inteligível dos espectáculos, Trump desbloqueou toda uma massa que já não conseguia nutrir grande emoção pela vida política. Afirmando que esta se tornara a verdadeira arena, qualquer forma de pudor parecia a partir de agora deslocada, e então ele aplicou-se em facilitar a leitura do combate por gestos, atitudes e mímicas que levavam a intenção ao seu máximo de evidência.
Desde o início da luta livre profissional, enquanto espectáculo de circo no final do século XIX, como nos lembra a jornalista Abraham Josephine Riesman, esta raramente foi aceite como uma legítima modalidade de competição atlética. “Ao contrário da luta livre com que podemos deparar-nos num encontro de atletismo escolar ou nos Jogos Olímpicos, o resultado de um combate de wrestling profissional é determinado antecipadamente. Os enredos e os monólogos de ‘trash-talking’ (guerras de palavras) são previamente definidos por guionistas. Os lutadores mais famosos — figuras como Dwayne “The Rock” Johnson, John Cena e “Stone Cold” Steve Austin — muitas vezes exageram até ao absurdo certos traços das suas personalidades. O combate entre os lutadores é uma ilusão semi-coreografada para transmitir uma ideia de força sobre-humana e um nível de sofrimento e dor quase inimagináveis. A luta livre profissional é, para responder a uma pergunta que continua a ser recorrente entre quem é estranho ao fenómeno, uma farsa.”
A autora publicou um livro em que investiga o império construído por Vince McMahon (“Ringmaster: Vince McMahon and the Unmaking of America”), o homem que presidiu à WWE entre 1980 e 2022, e que, hoje, está enredado numa série de processos em tribunal, tendo este provado ser um talento visionário para os negócios e para o espectáculo e, também, uma absoluta falta de escrúpulos, o que fez dele um estupendo vigarista. Num artigo de opinião publicado nas páginas do The New York Times, Riesman defendia que a melhor forma de compreender a situação em que se encontra o GOP em termos da sua estratégia para vencer no campo político é a mutação que McMahon operou no universo do wrestling desde que sucedeu ao pai como presidente da WWE. A jornalista explica que até ao seu aparecimento, a realidade do wrestling podia ser descrita como uma oligarquia controlada pelos promotores de cada uma das secções regionais daquele regime de fantasia, orientando os lutadores como marionetas e gizando uma espécie de drama, sendo-lhes dito com quem tinham de fingir estar furiosos, num tipo de representação que já então tinha bastantes aspectos em comum com a vida política. Para tornar mais claro este paralelo, ela refere como muito daquilo que é dito pelos candidatos durante as acções eleitorais pode soar ridículo para quem não for apanhado no calor da campanha. “Também o wrestling parecia absurdo para aqueles que não estavam entre os seus fãs. Na verdade, também ia ao ponto de ser absurdo mesmo para muitos dos fãs – até uma criança consegue perceber, ao fim de algum tempo, que alguns daqueles movimentos seriam impossíveis sem a cooperação entre os lutadores. Mas estes entusiastas não se importavam com o facto de o espectáculo exigir deles essa suspensão da descrença, pois estavam cativados pelas personalidades, por toda aquela algazarra de bufões enraivecidos, e ansiavam por se perder na ilusão. Queriam acreditar. Por orgulho ou por vergonha, os adeptos raramente reconheciam aos detractores que o seu amado ‘desporto’ estava viciado. Para defender a sua honra, mantinham a mentira de que era real.”
E, no entanto, Riesman entende que, se até certa altura as fundações do wrestling assentavam nesse elemento de delírio consciente, erguendo uma mitologia que se sabia falsa, o homem que comprou cada uma das ligas regionais, impondo um monopólio, levou a sua construção de mitos para um terreno bem mais resvaladiço: uma zona oscilante entre verdades, meias-verdades e falsidades, todas proferidas da forma mais eloquente e comprometida. De tal modo que, ao fim de algum tempo, mesmo os produtores e a audiência tinham cada vez maior dificuldade em distinguir entre o que é real e o que não é. Cada vez parece mais difícil perceber onde começa a linha que separa os lutadores das personagens, ao passo que os fãs começam também eles a viver de forma obsessiva as ilusões que o espectáculo lhes oferece, mimetizando de forma excessiva e até violenta a sua devoção, engolindo seja o que for em nome da emoção – e a verdade que se lixe.
No entender da jornalista, é esta a essência da actual estratégia republicana para a campanha e para a governação. “Não é de admirar, dada a influência de McMahon na política do GOP. O seu produto, repleto de fanatismo e malevolência, foi uma influência cultural decisiva para inúmeros millennials, especialmente durante o auge da W.W.F. no final do século – em 1999, a Gallup estimou que 18% dos norte-americanos, cerca de 50 milhões de pessoas, se consideravam fãs de wrestling –, e esses millennials foram levados a interessar-se por política e a entrar na cabina de voto. De lá para cá, a mulher de McMahon tornou-se numa importante angariadora de fundos, candidata e funcionária republicana. E, o mais importante de tudo, há a ligação a Trump.”
Riesman explica que McMahon e Trump têm mantido uma relação de proximidade desde há 40 anos. De resto, mesmo antes de conhecer o patrão da WWE, Trump já era fã da modalidade. E a autora lembra como ele actuou como “anfitrião” de duas edições da ‘WrestleMania’ antes de ter ele integrado aquele regime de fantasia, fazendo de si mesmo num enredo em que ele e McMahon fingiam ser inimigos figadais, enviando lutadores para se confrontarem na ‘WrestleMania 23’ de 2007.
No entender de Riesman, Trump pode ser apenas o primeiro – embora possivelmente não o último – membro do WWE Hall of Fame a ocupar a Sala Oval. E se antes de conhecer McMahon provavelmente nunca fora dada a Trump a possibilidade de guiar “uma arena barulhenta a um frenesim amargo e avassalador, alimentando-a com uma mistura de insinuações degradantes e mentiras ultrajantes”, para a jornalista esta habilidade, tão essencial no wrestling, viria a tornar-se a marca registada de Trump, e a ter uma ressonância na vida política por todo o mundo.
Nesta sua nova configuração espectacular, e neste mundo realmente invertido, o falso é apenas um momento na erupção de uma emoção que quer tomar conta de todos os aspectos da vida pública, e, uma vez que o público passou a ditar as leis, este triunfou enquanto elemento decisivo das democracias, quando as massas ajustam contas com aquilo que fizeram delas.
A verdade torna-se, assim, impotente numa época que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser, como nos diz Feuerbach, naquele excerto que abre caminho à Sociedade do Espectáculo. “O que é sagrado para ela, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ela o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.”
A adesão não é a Trump, mas a essa visão do mundo que, com homens como ele, se objectiva. Como nos diz Debord, “o espectáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio”, e o público acata este desígnio na medida em que isto lhe oferece esse elemento de delírio e de conservação da sua inconsciência face a realidades e a um mundo cada vez mais indigesto e ingerível. “Trata-se, portanto, de uma verdadeira Comédia Humana, em que os matizes mais sociais da paixão (fatalidade, justiça, crueldade refinada, sentido da ‘paga’) encontram sempre com felicidade o sinal mais claro que possa recolhê-las e levá-las triunfalmente até aos confins do auditório”, diz-nos Barthes. “O que o público reclama é a imagem da paixão, não a própria paixão. Não existe um problema de verdade no wrestling, da mesma maneira como não o há no teatro”, adianta o pensador francês.
E depois de ter flirtado durante demasiado tempo com essa suspensão da moralidade, essas normas de conduta que são observadas pelos membros da tribo para impedir que esta se autodestrua, a política está prestes a testar esse limite. Doravante, a verdade apenas será admitida enquanto suportar a figuração inteligível de situações morais que alimentem as tensões representadas na arena. “Este esvaziamento da interioridade em benefício dos seus sinais exteriores, este esgotamento do conteúdo pela forma, é o princípio mesmo da arte clássica triunfante”, vinca Barthes. “O wrestling é uma pantomima imediata, infinitamente mais eficaz do que a pantomima teatral, porque o gesto do lutador não necessita de nenhuma efabulação, de nenhum cenário, numa palavra, de nenhuma transferência para parecer verdadeiro.”
Trump é apenas um desses nativos do quadro de alienação total que o espectáculo foi induzindo, alguém que nos surge adiantado, por se ter libertado de quaisquer escrúpulos ou remorsos que pudessem ainda nutrir um vínculo com o estado de coisas anterior. Tendo-se habituado a produzir todos os detalhes do seu mundo, a viver exclusivamente para a imagem, este corte aparentemente radical face a uma hipotética consciência ou moral é apenas sinal de uma ausência. Ele não precisa de sustentar o mito de uma interioridade, pois tudo isso se tornou uma afectação com cada vez menos prestígio. Trump coloniza os territórios abandonados, detectando as fraquezas de um mundo que apenas resiste pelo nosso apego às ruínas que sustentam o vínculo com o passado. Mas ele, tal como os lutadores de wrestling, aprendeu a lisonjear o poder de indignação do público propondo-lhe “o próprio limite do conceito de Justiça, essa zona extrema do combate em que basta violar um pouco mais as regras para abrir as portas a um mundo desregrado”.
Trump oferece uma libertação desses elementos de interioridade que não têm qualquer cabimento numa sociedade cujo clima natural se entende ser o do Mal. Assim, a política assume o registo de um combate constante e empurra-nos para um carácter de excepção. E numa época em perda e declínio irreparável, nenhuma outra mensagem é mais sedutora do que aquela que permite ao eleitorado fundir-se com a audiência e sentir a fúria vingativa de um combatente que encarna o ser traído e que se lança com paixão, não sobre um adversário concreto, mas sobre a imagem severa da deslealdade.
Assim, o pior cenário no próximo dia 5 poderá nem ser a vitória de Trump. Estão reunidas as condições para um conflito insanável, caso o resultado não seja este. Como lembra Barthes, para o movimento justiceiro o que a Justiça significa é a todo o momento o corpo de uma transgressão possível, ou seja, “é porque há uma Lei que o espectáculo das paixões que a desbordam ganha todo o seu preço”.