Kamala Davi Harris nasceu, há sessenta anos, na cidade de Oakland, na Califórnia. No dia 5 de novembro, a filha de Donald Harris, da Jamaica, e de Shymala Gopalan, proveniente da Índia, pode tornar-se a primeira mulher Presidente da história dos Estados Unidos da América. É atualmente casada com Douglas Emhoff, um advogado americano.
Os pais, que se conheceram através de um grupo de estudantes negros da Universidade da Califórnia, foram figuras proeminentes no movimento dos direitos civis no Campus da Universidade em 1963, tendo-se divorciado nove anos depois.
Kamala vem de uma família de classe média, argumento ao qual tem recorrido diversas vezes durante a campanha para estabelecer um contraste com o estilo de vida abastado do seu adversário, mas cresceu de forma desafogada na Costa Leste dos Estados Unidos, visitando, com a mãe, a Índia em várias ocasiões.
Estudou na Universidade Howard, um bastião afro-americano, onde se graduou em Ciência Política e Economia, tendo mais tarde frequentado a Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, de onde saiu em 1989. Em 1990, começou a carreira profissional na advocacia, onde serviu, desde logo, como procuradora-distrital adjunta, na sua cidade natal. Ocupou o cargo até 1998, focando a sua ação no combate à violência perpetrada pelos gangues, ao tráfico de drogas e ao abuso sexual, e tornou-se procuradora-distrital em seis anos mais tarde.
Da Procuradoria-Geral da Califórnia ao Senado
Foi em 2010, quando ganhou a corrida à procuradoria-geral do Estado da California, que Kamala Harris deu o salto e, por surpreende que hoje possa parecer, manteve-se firme perante pressões da administração de Barack Obama, um dos seus maiores ativos políticos atuais.
Vincadamente progressista, Harris recusou-se a defender uma lei que proibia o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Califórnia, posição que levou à revogação da lei em 2013. Tudo parecia bem encaminhado para a sua ascensão dentro do aparelho democrata, algo que se consumou em 2016, quando conquistou um lugar no Senado – posição para a qual se candidatou com base em propostas de aumento de salário mínimo, em reformas para o sistema judicial e na mudança da abordagem à imigração. Foi, sem dúvida, uma das pioneiras da viragem à esquerda do Partido Democrata na última década.
Uma vez no Senado, Kamala integrou tanto o Caucus afro-americano quanto o da Ásia-Pacífica, fazendo-se valer das suas origens multiculturais. A Senadora, então com 53 anos, foi também parte integrante do Comité Restrito de Informações e do Comité Judiciário.
Senadora durante a presidência de Donald Trump, e utilizando a sua experiência enquanto advogada e procuradora-geral, Harris encarava as audiências em Washington como se estivesse no Supremo Tribunal da Califórnia, o que levou com que fosse vista como uma figura divisiva. Ainda assim, o seu ímpeto dentro do Partido Democrata não parava de crescer e a sua posição favorável ao aborto foi, e ainda é, uma das suas principais bandeiras.
O desastre (ou não) de 2020
Kamala Harris anunciou a intenção de concorrer à Presidência pelos democratas em 2019, apresentando-se às primárias do partido do ano seguinte. Um processo que certamente não correu como esperava, já que as expectativas eram altas. Os seus fortes ataques a Joe Biden foram merecedores de destaque, mas, e por surpreendente que possa parecer, a sua candidatura não resistiu aos ataques de candidatos ainda mais à esquerda quanto à sua ação como líder do sistema judicial da Califórnia. O discurso de Tulsi Gabbard, ex-democrata do Havai que hoje apoia Donald Trump, foi também responsável pela queda de Harris, que se retirou da corrida ainda em 2019.
2020 foi um ano atribulado para os Estados Unidos. Primeiro, o aparecimento da Covid-19, e depois a morte de George Floyd às mãos de um polícia, que fez reavivar o movimento Black Lives Matter, mergulhando os EUA num caldeirão social e político. Mas Harris capitalizou. Se estava debaixo de fogo da esquerda “woke” pela sua conduta enquanto procuradora, o seu apoio vocal à causa de George Floyd fê-la cair em boas graças dessa franja – tanto no partido como fora dele.
Com o aumento de tensões, a cúpula do Partido Democrata optou por escolher Kamala, uma mulher negra com experiência na advocacia e com uma passagem que se pode dizer, de certo modo, impactante no Senado, para assumir a candidatura à vice-Presidência. As vantagens que se poderiam tirar de uma candidata como Harris eram por demais evidentes.
Em novembro de 2020, menos de um ano depois de desistir das eleições primárias do Partido Democrata, Kamala Harris é eleita vice-Presidente dos Estados Unidos e, dois meses mais tarde, chega à Casa Branca.
A czarina da fronteira
O mandato de Harris enquanto vice-Presidente ficará marcado pela situação na fronteira com o México, assunto que Joe Biden lhe delegou e que lhe valeu o título de Czarina da Fronteira. O evidente fracasso custou-lhe popularidade e é um dos principais pontos explorados pela campanha de Donald Trump. A própria já admitiu na campanha que irá lutar pelo reforço da segurança na fronteira.
Outro marco da sua passagem pela Casa Branca, que ainda não terminou, foi estabelecer um novo recorde de número de votos de desempate no Senado da história, com uns assinaláveis 33 votos – contrastando de forma clara com os 11 de Mike Pence, os 8 de Dick Chenet, os 4 de Al Gore e os 7 de George H. W. Bush. É ainda de notar que Joe Biden, enquanto braço-direito de Barack Obama, não teve qualquer voto decisivo.
“Politics of joy”
O declínio de Joe Biden era já evidente desde meados de 2022, e após dois anos de sucessivas tentativas de negação que culminaram no desastroso debate frente a Donald Trump, a falta de apoio dos “pesos pesados” democratas forçaram o Presidente incumbente a desistir da tentativa de reeleição. Com isto, Kamala Harris chega à nomeação a poucos meses das eleições, não passando por um processo desgastante de primárias.
A vice-Presidente foi responsável pela revitalização da campanha democrata, tornando-se numa verdadeira máquina de angariação de fundos e baseando a sua candidatura nas boas sensações e no anti-trumpismo. Mas a dificuldade em clarificar se representa uma rutura ou uma continuidade da atual administração, o cenário económico nacional e o rumo que a política externa americana tem tomado nos últimos quatro anos – num dos períodos mais desafiadores da ordem internacional liberal das últimas duas décadas e meia –, juntamente com alguma falta de clareza de pensamento e de uma tomada firme de posição, voltou a equilibrar as sondagens.
Em caso de vitória no dia 5 de novembro, independentemente do seu projeto, Kamala Harris fará história. Em caso de derrota, é provável que volte a tentar em quatro anos.