Brincar ao medo

O Halloween não é uma vénia ao Diabo ou aos espíritos malignos, mas por isso mesmo, não é nada. Ou seja, se não tem mal também não tem bem nenhum. Então, qual a necessidade para se espetarem facas a fingir na cabeça das crianças?

Foi há pouco mais de 15 anos que começou a febre do Halloween  em Portugal. Chegou com o Disney Channel e com o apogeu da globalização, e nunca mais nos deixou. Herdamos tudo e as bruxas e os esqueletos não são exceção. Importei o modelo e fiz uma festa para o meu filho mais velho. Esparguete preto com salsichas cortadas e pintadas com ketchup a imitar dedos ensanguentados, aranhas espalhadas pelas mesas, abóboras descascadas e iluminadas por dentro, balões pretos, frascos de groselha com bolas a fazerem de olhos. Fiz tudo. O filho era o mais velho, já se vê. Foi um sucesso. Os miúdos deliraram e depois do jantar foram vaguear pelas ruas, de porta em porta, a acordarem os vizinhos para pedirem doces. Sem sorte nenhuma.  A tradição não era ainda tradição entre os vizinhos. 

No dia seguinte, a mesma criança saiu cedo de casa para ir bater às mesmas portas a pedir Pão por Deus. De café em café, de casa em casa, outra vez a pedinchar guloseimas, mas desta vez porque era o dia de Todos os Santos. A tradição falou mais alto e chegou a casa com o saco a transbordar de doces. Nunca mais repeti uma festa de Halloween.  Por nenhuma razão especial, religiosa ou ideológica. Pareceu-me apenas parvo, sem vínculo que se justificasse. Além disso, deu-me imenso trabalho. 

Anos depois, tenho o meu filho mais novo como fã de Halloween.  Quer mascarar-se de fantasma, de esqueleto ou de lobisomem. Quanto mais repugnante, melhor. O objetivo não é fazer rir ou disfarçar-se, como acontece no Carnaval, mas sim assustar e assustar-se. O programa, diz ele, implica que a noite de dia 31 seja sinistra. Não se atiram ovos ou bombinhas de mau cheiro, nem se quer mascarar de polícia ou de palhaço, é mesmo apostar em coisas sinistras.  E não faz mal nenhum, diz ele. 

Concordo em absoluto com a criança. Também acho que o Halloween não tem mal nenhum. Não é uma vénia ao Diabo nem uma porta de entrada aos espíritos malignos. Mas por isso mesmo, não é nada. E não há razão para que se espetam facas a fingir na cabeça das crianças ou que elas andem a passear pela rua vestidas de múmias. Ou seja, se não tem mal também não tem bem nenhum. 

Por cá, e na minha terra em especial, não há tradição de Halloween assim como no Texas os miúdos não andam de casa em casa a pedir Pão por Deus. A vida é como é e a geografia também. No Halloween é suposto rir do medo.  Não faz sentido: se por um lado passamos o ano a dizer aos nossos filhos que os fantasmas não existem, os mortos-vivos são uma invenção e os lobisomens um mito para os consolar do medo do escuro, por outro, a 31 de outubro pintamos-lhes  a cara de preto com sangue a escorrer pelos cantos da boca. Se os miúdos não têm idade para ver filmes de terror, muito menos têm idade para brincar com ele. Quanto aos doces, a lacuna resolve-se com um saco de gomas.