Sempre tive um fascínio por relógios. Com o primeiro ordenado que ganhei (como estagiário no ateliê do arquiteto Manuel Tainha) comprei um relógio. Era um Omega Chronostop, um modelo desportivo de mostrador e pulseira de cor verde, com cronómetro, comprado – imagine-se – numa ourivesaria em Seia, quando estava lá a acampar com o meu pai e os meus dois irmãos.
Já namorava aquele relógio há algum tempo – e quando o vi na montra daquela loja não pensei duas vezes.
Tive esse relógio durante muito tempo – até o meu filho mais novo, o Zé, o cobiçar com sucesso. Julgo que ainda o tem e ainda trabalha.
Depois desse Omega, o relógio que mais me entusiasmou foi um Longines Dolce Vita, também um modelo desportivo, de mostrador retangular. Não era barato – e, quando o pensei comprar, tinha viagem marcada para Tóquio, pelo que decidi esperar. Lá poderia haver outro que me encantasse. Isso não aconteceu, mas acabei por descobrir um modelo muito parecido, bastante mais barato.
Já deveria saber naquela altura que, quando estamos fixados num objeto, é um erro comprarmos um ‘sucedâneo’. Arrependemo-nos sempre. Ainda por cima, o relógio que comprei era automático, ou seja, aquilo que o fazia trabalhar era o próprio movimento do braço. Quando estava alguns dias fora do pulso, parava. Ora, como eu gosto de trocar de relógio de vez em quando, depressa concluí que aquele não me servia. Acabei por pô-lo de lado – e comprar mesmo o tal Longines Dolce Vita. Ainda hoje o tenho e uso com frequência.
Uns anos mais tarde enamorei-me por outro Longines, mas bastante diferente daquele. Foi na primeira vez que fui a Nova Iorque. Em Chinatown havia uma zona com dezenas de lojas enormes a abarrotar de relógios, que ocupavam a rua com bancadas cheias de modelos para todos os gostos. Tendo em conta as marcas e os preços, eram notoriamente contrafações. Mas tudo era vendido às claras.
Perante aquele autêntico mar de relógios, não era fácil escolher. Mas nisso nunca tive dificuldade. Os meus olhos são atraídos para aquilo que me interessa. Vi, assim, um Longines modelo muito clássico – que me prendeu pela extrema simplicidade.
Não tinha nada a mais ou a menos: mostrador redondo, branco, circundado por um aro muito fino de metal cromado; duas linhas de aço de comprimentos diferentes correspondentes aos ponteiros; números romanos estilizados marcando as horas; e a rematar este minimalismo, uma espessura mínima.
A pulseira também era atraente: em pele de crocodilo negra, com um fecho metálico, sem fivela.
O relógio custava 10 dólares – mas estupidamente não o comprei.
Quando cheguei ao hotel, porém, já estava arrependido. E no dia seguinte, logo depois do pequeno-almoço, meti-me no Metro, saí em Chinatown, não demorei muito tempo a descobrir a loja e a bancada onde o tinha visto – e ele continuava lá!
Fiquei feliz.
Quando voltei a Lisboa, passado um tempo de o ter a uso, guardei-o no estojo dos relógios e passei a utilizar outro. E quando voltei a colocá-lo no pulso, umas semanas ou meses depois, continuava certo como um relógio suíço… autêntico!
Um dia, porém, sucedeu um facto estranho: adormeci no sofá (o que raramente me acontece) com o relógio no pulso, e quando acordei vi que se tinha atrasado meia hora.
Concluí que a pilha já estava fraca. Fui a uma relojoaria, o funcionário abriu o relógio, mediu a corrente da pilha, e finalmente informou-me:
– A pilha está boa.
Estranhei, mas não podia contestar. Perguntei quanto era, o homem respondeu que não era nada, agradeci e saí.
E a verdade é que a partir daí o relógio se manteve sempre certo. Não o usei durante uns meses – mas quando voltei a colocá-lo continuava a funcionar na perfeição. Até há uma meia dúzia de semanas.
Constipei-me (talvez fosse covid), senti uma pontinha de febre e uma grande prostração, deitei-me sem me conseguir despir, dormi durante umas quatro horas – e quando acordei verifiquei que o relógio estava atrasado uma hora.
E aí percebi tudo.
Se o relógio fosse automático, pararia quando o guardo no estojo; se fosse de corda, pararia quando me esquecesse de lhe dar corda; mas andar mais devagar quando eu durmo com ele no pulso só pode ter uma explicação: o relógio não gosta que eu durma.
Pode estar no pulso, pode estar fora do pulso, dias, semanas, meses, que não se atrasa nem se adianta; mas se adormeço com ele colocado revolta-se – e a forma de se vingar é começar a andar mais devagar.
Para lá de ser bonito, o relógio tem esta característica – que o torna único.