Passadas mais de nove décadas sobre a ascensão do partido nazi ao poder na Alemanha (janeiro de 1933), um dos aspetos que continuam a intrigar-nos é como homens de reconhecida cultura foram capazes de perpetrar tamanhas atrocidades. Muitos deles não eram brutamontes básicos e ignorantes, eram homens inteligentes, que tinham gostos requintados – e, apesar disso, promoveram a mais cruel e a mais estúpida barbárie.
A música, por exemplo, era especialmente apreciada nos círculos de poder do Reich. E um compositor gozava de um estatuto à parte: Strauss – não Johann Strauss, o das valsas vienenses, mas Richard Strauss, o autor do poema sinfónico ‘Assim Falava Zaratustra’ e do hino dos Jogos Olímpicos de Berlim.
Porém, nem ele estava completamente a salvo.
Quando se perfilava para presidir à Câmara de Música do Reich, Albert Rosenberg, um dos grandes ideólogos do nazismo (que Goebbels, o ministro da Propaganda e seu rival, considerava, com desdém, «um intelectual»), tentou bloquear a nomeação. Rosenberg dizia daí «podia resultar um ‘escândalo cultural’, uma vez que o libretto da sua ópera Die schweigsame Frau (A Mulher Silenciosa) havia sido escrito por um judeu», escreve Ralf Georg Reuth na sua excelente biografia de Goebbels.
Como tantos outros naquela época, e à imagem do líder supremo, oideólogo do nazismo tinha pelos judeus uma obsessão absolutamente doentia. O seu alvo seguinte seria Paul Hindemith, a quem acusou de «passar a maior parte do tempo na companhia de judeus».
Hindemith era um jovem músico promissor, talvez demasiado moderno para o gosto conservador dos nazis. O famoso maestro Wilhelm Furtwängler saiu em sua defesa, com um artigo no Deutsche Allgemeine Zeitung. «Houve tanta procura do artigo que o jornal teve de imprimir uma nova edição», nota Ralf Georg Reuth. «Furtwängler argumentava que, dada a escassez em todo o mundo de músicos verdadeiramente talentosos, não se podia pôr de parte um homem como Hindemith. E fazia uma pergunta, implicitamente dirigida a Rosenberg:o que aconteceria ‘se a denúncia política fosse levada às suas últimas consequências nas artes?’ Na noite em que o artigo saiu, deu-se o caso de Goebbels e Goering estarem na Staatsoper [a ópera estatal de Berlim]. Furtwängler recebeu um longo e marcadamente entusiástico aplauso».
Repreendido por Goebbels, o maestro decidiu apresentar a sua demissão dos cargos oficiais e emigrar para a América. Por circunstâncias várias acabaria por não o fazer.
Há quem veja a posterior retratação de Furtwängler, dizendo que a política cultura cabia «exclusivamente» ao Führer e ao ministro por ele nomeado, como uma demonstração de fraqueza. Não posso concordar.Quem mais na Alemanha daquele tempo tinha a coragem de dizer que os judeus eram um «povo brilhante»? Quem mais tinha a coragem de recusar a fazer a saudação nazi a Hitler, continuando a segurar na batuta? Himmler, que nisso era ainda mais implacável do que Goebbels, queria mandá-lo para um campo de concentração…
Furtwängler continuou na Alemanha e em 1936 foi nomeado diretor musical do Festival de Bayreuth. Depois de 1945 foi saneado por ter colaborado com os nazis e reabilitado ao fim de dois anos, voltando a tutelar a Filarmónica de Berlim entre 1952 e a sua morte em 54.
Paul Hindemith, o homem no centro da discussão, esse sim, emigrou primeiro para a Suíça, em 1938, e depois para os Estados Unidos, em 1940 (regressaria à Suíça mais tarde). Goebbels, que começara por considerá-lo «um dos mais fortes talentos na geração mais jovem de compositores», viria a chamar-lhe «um fazedor de ruído atonal». Não era preciso mais para Hindemith perceber que já não havia lugar para ele na Alemanha.