Welket Bungué. “Para seres melhor ator, tens de ser melhor pessoa!”

Portugal não foi muito simpático consigo mesmo depois de ter terminado os seus estudos. Mas nunca desistiu. Voou para o Brasil e as portas abriram-se: Berlim, Irlanda, Argentina… Em 2020 ganhou o prémio de Melhor Ator no Festival de Cinema de Estocolmo.

Welket Bungué sempre teve um sonho: ser ator. Poucos acreditaram e, segundo o artista, Portugal não foi muito simpático consigo mesmo depois de ter terminado os seus estudos. Mas nunca desistiu. Voou para o Brasil e as portas abriram-se: Berlim, Irlanda, Argentina… Em 2020 ganhou o prémio de Melhor Ator no Festival de Cinema de Estocolmo. Ao mesmo tempo, dedica-se ao cinema de autorrepresentação com o objetivo de desmistificar preconceitos e tornar-se sempre melhor pessoa, já que acredita que só dessa maneira conseguiremos mudar o mundo.

Nasceu na Guiné-Bissau em 1988. Calculo que não tenha muitas recordações da infância em África. Da Guiné-Bissau não me lembro de muito. Às vezes vejo algumas fotografias e aquilo que reproduzo nas minhas memórias é de viver numa aldeia bastante humilde, de brincar muito na rua com as outras crianças… A presença da terra despida é muito recorrente: o cheiro a chuva, terra molhada. Acho que quando era miúdo era comum comer feijão encarnado com açúcar… (risos)

Com três anos veio para Portugal. A primeira casa foi no Campo Mártires da Pátria… Certinho! Morávamos em frente ao Hospital dos Capuchos. Não tive muita perceção da mudança. Quando somos miúdos parece que mudamos apenas para outro bairro… Fizemos a travessia de avião e, chegando aqui, começámos a frequentar infantários. Lá vivia com os meus irmãos da parte da mãe e, quando vim para cá, vim com o meu irmão mais novo, unicamente da parte do pai. Passei a viver com uma outra mãe (aquela que foi a última companheira do meu pai) e a estreitar laços de fraternidade com esse irmão. Nós crescemos juntos. Vivemos no Campo Mártires da Pátria, mas muito cedo mudámo-nos para a Ramada e estudámos em Odivelas. Foi uma infância incrível. Estávamos na Serra da Amoreira, onde há uma grande extensão de mato. Brincávamos muito ali. A rua onde morávamos era uma das únicas zonas da região onde havia prédios. Nesse prédio acabaram por ir morar outras famílias guineenses. Portanto, no meio de um bairro constituído sobretudo por vivendas, havia esse que tinha várias famílias da Guiné. Os fins de semana eram repletos de convívio.

Um prédio de portas abertas… Portas abertas, comidas típicas, música… A cultura guineense esteve sempre muito próxima durante a minha formação e educação!

O seu nome tem um significado bonito. O meu nome completo é Welket N’Cabna Tambá Bungué. Mas Welket significa «reviravolta». Significa «avesso relativamente a algo que se estava à espera». O meu pai, sendo um amante da poesia, escolheu todos os nossos nomes a dedo, e todos iniciados com W. São todos questões ou afirmações. É uma longa história! 

O seu tio costumava alugar filmes nos fins de semana. Sente que esse hábito influenciou o seu caminho? Foi aí que nasceu a paixão pela representação? Claramente! Só me apercebi disso há cinco anos. Eu sempre quis ser ator, era uma fantasia. Mas também quis ser cozinheiro e advogado… O meu pai, antes de morrer, estava a tirar o mestrado em Direito, já depois de ser engenheiro florestal na Guiné-Bissau. Por conta dos estudos, teve de ver um filme várias vezes que era O advogado do Diabo, com o Al Pacino. Isso fez-me novamente querer ser ator e coincidiu com a nossa primeira ida ao cinema. Foi em Janeiro de 1998. Fomos ao cinema de São Jorge ver Crime Público, com o Will Smith. Foi a primeira vez que vi os rostos em grande… Foi uma coisa que se foi materializando, cada vez mais consciente.

Sempre teve jeito?  Sempre fui um tipo que‘brincava muito a sério’, por mais que fosse fantasia. Brincávamos no mato, imaginávamos que éramos heróis… O meu irmão dizia-me: «Tu és muito imaginativo!». Claro! Havia coisas que eles sabiam que não eram reais… Voar, fazer o «Kamehameha», por exemplo. (risos) Acho que ao amadurecer, embora percebesse que muitas dessas coisas eram impossíveis, a possibilidade de imaginar era uma coisa que me dava bastante alento.

Passou a sua adolescência em Beja, na Casa do Estudante, onde esteve 8 anos.  Foi lá, aos 15, que começou a fazer teatro amador.  Estreou na peça ‘Hamlet’, de William Shakespeare. Lembra-se da sensação de pisar, pela primeira vez, as tábuas de madeira? Quando piso o palco há uma série de sensações que me visitam. Acredito que a primeira frase deve ter sido: «Ai, ai, a porra!». (risos) Foi a partir daí que descobri toda uma outra dimensão da atuação que tem a ver com a textualidade, o aspeto literário da profissão… Foi uma sensação fantástica. Eu estava vestido de mulher, fiz a rainha Gertrudes, a mãe do Hamlet. Falávamos português e tínhamos trejeitos alentejanos. Era uma adaptação. Como éramos apenas dois atores e a peça tem apenas duas personagens femininas, subvertemos o género. Os rapazes fizeram as personagens femininas e as mulheres as personagens masculinas. Foi em Setembro de 2006.

O que é que mais o fascinava no Teatro? O que me fascinava é o que me fascina agora. O Teatro para mim é encantamento! Só quem tem esse espetro imaginativo e infinito é que consegue abraçar o teatro como algo real e tangível. O nosso grande papel enquanto atores é atuar, passo a redundância. Significa que temos de fazer. A representação cabe a quem vê. O teatro, enquanto lugar de onde se vê, deve proporcionar isso às pessoas. Significa que tu tens aqui uma grande possibilidade de trabalhar o comportamento, baseando-te, sobretudo, no que tu não sabes. É isso que vai ativar a capacidade interpretativa de quem vê.

Mas para um jovem não é fácil ter essa linha de pensamento… Não tinha, mas já tinha uma série de sonhos incorporados que poderiam ganhar vida no Teatro. Por isso, uma das primeiras coisas que me pediram – e que nunca tinha feito –, foi cantar com o meu nome. Quando chegas a esse lugar entras logo num mundo que tolera bastante a subjetividade de cada um. Quando faço esse workshop de iniciação teatral, faço-o com um formador – que hoje em dia é o meu padrinho de Teatro –, o David Silva. Foi ele quem fez os Morangos com Açúcar. A primeira vez que vimos pessoas a falar português da nossa idade foi com essa série. Isso também fomentou e reacendeu o desejo de ser ator. Pessoas da minha idade a fazer televisão. Falavam como nós, vestiam-se como nós…

Foi a primeira vez que nos sentimos representados, pelo menos culturalmente… Exato! Porque etnicamente ainda havia uma grande lacuna. Temos estado a desmistificar isso. Mas ainda sobre o desejo de ser ator… Um dia, no internato em Beja, tivemos a visita do Pedro Lima.  Disse-lhe que queria ser como ele. Ele disse-me que era possível, que tinha de me ir formar! Isso deu-me força. Tornou-se real a ideia que tinha na minha cabeça. E isso faz-me saltar já para 2008, quando fui para o Brasil fazer a série Equador e contracenar com os mais ilustres nomes da ficção nacional: Nicolau Breyner, Maria João Bastos… Volto para cá e, em dezembro, recebi o convite para fazer Morangos com Açúcar.

Depois do internato, regressa a Lisboa, à casa dos pais e, durante três anos, faz teatro académico na companhia Rastilho. A sua família apoiou a sua paixão?  Se o meu pai estivesse vivo, havia uma grande probabilidade de eu não ser ator. Teria de ser uma espécie de hobby… Em miúdo dizia ao meu pai que queria ser ator e ele aceitava, mas não levava muito a sério.

Na cabeça dele, o Welket gostava de «fazer uns teatrinhos»? Isso! «Ainda és novo!», dizia-me. Mesmo no colégio, quando dizia que queria ser ator, ouvia: «Ator? Vê lá! Não é melhor ir para um curso que te dê mais garantias?». Depois do colégio, fiquei dois anos sem estudar. Já na casa da minha mãe. Foram dois anos muito importantes. Foi aí que comecei a fazer teatro académico e foi extremamente importante para a minha preparação para o conservatório.

Por falar em formação… Tirou a licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa. A formação dos atores é fundamental? Hoje fala-se sobre os «atores naturais». Todos nós somos potenciais atores e atrizes. Basicamente tens de continuar a nutrir a tua criança interior (esse aspeto do teu âmago espiritual onde tudo é possível).  Depois isso vai-te sendo retirado enquanto cresces e é por isso que muita gente acaba por abandonar os sonhos. Quando estamos a falar de profissão e da indústria… Oh meus amigos, vocês têm de se informar! Existem várias camadas nesta profissão que tu só consegues efetivamente dominar e veicular de forma apropriada, quando tens formação. Essa formação é humana, académico-profissional e do campo esotérico. Ser ator é uma profissão que, a meu ver, não vem das humanísticas e científicas. Vem do campo da arte, da arte da existência. Do saber viver! Isso implica tu conjugares todos os campos de conhecimento possíveis. Para emocionares pessoas, falares com verosimilhança a partir de corporalidades em que tu nunca estiveste, tens de saber um pouco.

Os castings estão a mudar. Há quem dê mais importância ao número de likes no Instagram do que à formação. Isso é uma mazela cuja responsabilidade recai sobretudo nos produtores. Se a malta está rendida ao capitalismo, da mesma forma que a máquina usa a lógica algorítmica para selecionar quem se destaca na pilha, eles apropriam-se disso. E é uma pena. Vamos ter coisas vazias, não vamos fazer trabalhos que ficam para a prosperidade. Quando se é ator, nomeadamente um ator internacional, que é o meu caso, tens de aprender muita coisa. Tens de saber estar num contexto de festival, tens de saber comunicar (mesmo não dominando todas as línguas), tens de perceber como é que a tua atuação também não se rende aos apetites da direção. Muitas vezes eles vão buscar o ator e esperam que este seja tão bom até ao ponto de anular completamente a sua individualidade. Isso não é assim.

Sei que ficou triste com Portugal… Já admitiu em algumas entrevistas que não lhe deram muitas oportunidades. Sente que é uma coisa que continua a acontecer? Há falta de representatividade nas produções portuguesas? Perceciono dessa forma. O que mudou foi a minha maneira de estar. Não posso continuar a cobrar a Portugal uma coisa que ele não está disposto a assumir. É um exercício para o país, enquanto coletivo. Eu tive de abandonar a pátria. Só quem passa por isso é que sabe do que estou a falar. Tu teres de abandonar e brilhar noutros contextos e sentires que o teu país podia estar a aproveitar isso… Não podemos forçar as pessoas a receber ou aceitar coisas para as quais não estão preparadas. Isto é um movimento coletivo. Neste momento, eu agradeço por tudo o que me aconteceu. Entendo-me como uma pessoa mais consciente, portanto, há coisas que espero que Portugal me consiga dar e outras que necessariamente sou eu que consigo dar ao país. Há un devenir que está em curso que não afeta necessariamente apenas o ramo da ficção e audiovisual português. Vemos essas mudanças na música. Temos agendas pró-feministas muito mais ativas, organizações com uma agenda de afirmação da negritude portuguesa muito mais presentes – isso sensibiliza também os consumidores mais incautos –, e com a proliferação dos streamings, esta falácia do «cantinho da Europa», que achava que a ‘pretitude’ não vendia e tudo mais, acabou. Temos aqui a Globo Play, estamos muito mais perto destas agendas globais e não culturalista nacionalista. As mudanças estão a acontecer. Mas há coisas que já deviam estar muito mais evoluídas. Estou otimista!

Faltam novas narrativas? Continuo a achar que temos muitos produtores muito brincalhões. Temos tanto para arriscar e muitos de nós deixámo-nos sucumbir a esta euforia e lógica aceleracionista que está ligada ao turismo. Lisboa está na moda, por isso parece que, por vezes, cedemos à tentação de criar um modus operandi que alimenta essa lógica. Que pode desaparecer daqui a uns tempos…

Nos seus trabalhos de realização, aborda temas como a negritude, descolonização, subversão e questionamento às normatividades do sistema vigente. Acha que as pessoas ainda têm um pouco de receio de ‘meter o dedo na ferida’. Ou por outro lado, assumir responsabilidades? Essa mudança tem de partir de nós, em primeiro lugar. Isso tem de se tornar de tal modo categórico que tudo à volta também começa a mudar. Eu tenho vindo a investir num corpo de obra que é disruptivo. Porque também é consequência do meu movimento… «Meus senhores, não têm condições para mim, mas eu estudei, sou licenciado, não me podem dar papéis de brincadeira. Não acordo de manhã para vir dizer três textos que continuam a reproduzir certos estereótipos de pessoas com o meu perfil que são falaciosos!». Foi por isso que me fui embora. Reuni meios e recursos humanos para começar a contar histórias de uma outra maneira. Sempre com a consciência que o trabalho de desconstrução é constante.

Utiliza várias estéticas, linguagens, algumas não são fáceis de entender… É no desconforto que também nos desconstruímos? O desconforto é um estado e se a pessoa fica desconfortável é porque alguma coisa não está a assentar na forma como ela perceciona o mundo. Não me entendo como uma pessoa que gosta de chocar os outros. Não sou grande fã do grotesco. Gosto de delicadeza, sofisticação, mas às vezes isso implica baba, chorar muito, estar desnudo. Os meus filmes ainda não tiveram uma abordagem suficientemente profunda para perceber o que é que o artista quer dizer… Por isso é que escrevi o meu livro, para tentar organizar as coisas.

O livro foi lançado em 2022 e intitula-se: ‘Corpo Periférico’. Era uma necessidade que tinha há já algum tempo? Ele explica muita coisa. Não é apenas dirigido a gente que trabalha com o audiovisual. É uma perceção do mundo que é adaptável ao ofício que praticamos. Uma espécie de guia para quem se vê como alguém que pode trazer algo de relevante e valioso para o contexto global e que não sabe como assumir esse aspeto periférico da sua existência. Nasci com isso e fui-me tornando cada vez mais consciente. O meu nome é sobre reviravolta! (risos) É como eu disse… Eu já tinha o desejo de escrever esse livro. Na pandemia tive tempo. Já tinha 17 filmes feitos. Acho que foi uma mais valia. Queria deixar um testemunho autobiográfico e, ao mesmo tempo, que investisse numa explicação estético ensaísta, mas também metodológica sobre a realização de filmes com os recursos existentes…

Porque também se viu ‘obrigado’ a criar os seus próprios filmes. Fazer cinema independente não é fácil. Cinema independente e, em particular, de autorrepresentação, que é um cinema que não almeja ser integrado no contexto de um aparelho de indústria que se baseia nos cânones daquilo que é o «cinema bem feito»: com a assinatura de gente que já vem pontuada de outros financiamentos, ou daquilo que segundo a agenda do festival são as temáticas mais relevantes… Eles condicionam as coisas e a forma como as pessoas vão produzir as suas obras. Quando fazemos uma história, queremos que ela seja comunicada, temos de fazer através dos nossos canais, independentemente do alcance que tenham. Se tu trabalhas em continuidade, haverá um momento em que as pessoas – quando fazem as retrospetivas e quando há pessoas verdadeiramente críticas –, vão pegar nas obras. Quero desmistificar isso, dizer às pessoas que podem ser como realmente são e que não devem abandonar os seus sonhos.

Entre 2012 e 2013 vai para o Brasil. Na UniRio fez uma pós-graduação em Arte da Performance. Encontrou no Brasil o que procura cá? Claramente! Isto pode parecer um pouco esotérico, mas tu vais encontrar as coisas quando estás disponível para as ver. Um dos impactos mais importantes foi a leitura que os brasileiros tinham dos portugueses, a partir de toda uma bibliografia que não me foi dada na escola. Havia já coisas que eu aceitava com muita renitência aqui. Cheguei lá e percebi. Tudo isso começa a provocar um despertar em mim, especialmente o orgulho pela minha negritude, que havia sido mortificada aqui. Os personagens que eu fiz eram, sobretudo, enquadrados num contexto da temática do período esclavagista. Atores pretos e pretas que apareciam. Hoje, agradeço por tudo isso, mas percebo que quando trabalhas por necessidade de afirmação ou dinheiro, tu alimentas esses equívocos e esse sistema enganoso. A partir do momento em que ficas consciente, existe um outro preço. Começas a construir uma coerência maior, mas tens menos oportunidades porque vais ficando isolado. Não é preciso termos medo disso. Indo para fora, fui crescendo, mas isso foi revelando as parcerias sólidas que tinha aqui. Pessoas que já vislumbravam uma mudança.

O Brasil abriu-lhe muitas portas? Sim! Comecei a protagonizar. Primeiro em curtas-metragens e depois em produções com os melhores realizadores… O Brasil foi muito importante no meu processo. Valorizou-me, permitiu-me tornar-me uma pessoa mais rica, passei a olhar para o contexto da nossa indústria como um setor que gatinha com um certo carinho, com as suas limitações e  as potencialidades. Quero influenciar positivamente outros que estão aqui! Portugal não é um«não lugar», não é um lugar impossível.

São muitas as personagens a que já deu vida. Já admitiu que Saturno, na série portuguesa ‘Equador’, foi um dos mais desafiantes. Como gere o mergulho nas personagens? Houve um momento em que eu percebi que, como ator, não tenho de interpretar nada. As coisas estão escritas e eu atuo, e atuo com todas as minhas valências. As minhas ações vão definir a personagem. Tu começas a perceber o que a personagem é por conta das ações e daquilo que diz. Quanto mais contraditório é aquilo que ela diz e faz, mas complexa vai ser a tua perceção. Mas não é essa a nossa natureza? Estamos fadados à nossa incoerência, «porque querer é suscitar paradoxos», dizia Albert Camus. Dito isto, o trabalho é feito e eu dou 200%. Sou um ator muito presente, muito técnico, trabalho sempre com a eficiência da energia. Não gosto de repetir muito. Quando estou a dar, dou tudo, quando vivo, estou a viver com tudo também. É assim que trabalho.

É ator, realizador, argumentista, produtor, editor, locutor… Quanto mais completos formos, mais facilmente conseguimos lugar no meio artístico? Multifacetado… Completo não sei. Nunca consegues fazer tudo. Seres multifacetado mostra que tens generosidade para te colocares nesses lugares. Fruto de uma vida de migração também! De uma existência que nem sempre foi aceite pela maioria dominante, como estávamos a falar. Eu comecei a realizar porque não protagonizava. Tive de começar a escrever as minhas curtas-metragens para dirigir e queria trazer também outros atores. Mas chamo as pessoas que muitas vezes estão indisponíveis. Então dirigi, produzi, fui ator… Resolvido! Com o tempo consegui perceber como as coisas funcionam melhor. Para seres melhor ator, tens de ser melhor pessoa! Esta tem sido a minha lógica. Quanto mais viver e experienciar a vida, melhor eu acho que conseguirei interpretar as minhas personagens. Esta disponibilidade para aprender, aproximar-me de pessoas e de lugares, é muito benéfico para o meu trabalho como ator. Esta capacidade de atuar em línguas distintas, por exemplo, mesmo não a dominando… Ires filmar três meses para um país diferente. Não é fácil.

Neste momento mora em Berlim, mas já trabalhou em inúmeros países. Sente que isso traz mais legitimidade ao seu trabalho? Nós conseguimos desenvolver as nossas valências quanto mais estivermos em trânsito e em contacto com realidades que tragam fricção à nossa realidade, mas também é possível desenvolvermos muitos aspetos da nossa personalidade permanecendo num único lugar. Só que podemos colocar numa balança e ver como se comporta num contexto de uma produção internacional um ator que nunca saiu de Lisboa e um ator que está em trânsito há 12 anos. O estímulo ao desenvolvimento humano e profissional é diferente.

Em 2020, venceu o prémio de melhor ator no Festival de Cinema de Estocolmo. O que é que os prémios significam para si? É uma validação? Muitos atores não lhes dão importância… Há pessoas que dizem isso, mas vamos lá ver… É mais provável que um ator que trabalhe mais ganhe um prémio. E o que está a trabalhar mais deve ficar feliz só por isso. Ganhar o prémio não significa ganhar mais trabalhos e mais visibilidade. Agora, para quem vem de uma outra realidade, de um contexto sociocultural em que a representação de talentos com o meu perfil é pouca ou nenhuma – não é difundida de forma popular –, é muito importante. Porque a imprensa escreve sobre ti e o tipo que estiver numa aldeia na Guiné-Bissau vê e pensa: «Revejo-me nele! É preto como eu e, afinal, há pessoas pretas a ganhar prémios neste país. Onde é que é Estocolmo? Ah! É na Suécia! Na Europa. É possível que o trabalho dele seja reconhecido nesse lugar. Afinal o mundo não é assim tão mau como eu pensava». Neste sentido, para mim, os prémios são muito importantes. E claro, naturalmente, confere a qualidade e atribui prestígio àquilo que se está a fazer. Agora, o mais importante para mim é trabalhar e fazer projetos relevantes, do que propriamente almejar um prémio. Mais importante que os prémios é que haja oportunidades para as pessoas!

Costuma dizer que a Guiné-Bissau é um ‘um diamante em bruto que será lapidado por aqueles que são mais sensíveis, mais honestos e se preocupam com o bem-estar e o progresso no todo’. Já é parte disso. Tem projetos em vista? Quero construir um centro de residências artísticas que favoreçam o intercâmbio de talentos entre a Guiné-Bissau e o resto do mundo. Para que eu não seja o único Welket nas próximas duas décadas.

E projetos futuros? Sonhos? Acho que nós temos que manifestar as coisas e chegarmo-nos à frente para que elas venham! Tem de haver este movimento intencional para que as coisas aconteçam do jeito que nós acreditamos ser merecedores. Em 2023 eu decidi que me iria dedicar mais ao trabalho como ator e tenho recebido isso.

Fiz uma grande série no Brasil que vai estrear no próximo ano e que se vai chamar Reencarne. É uma produção da Globo Play. Estive também a fazer uma longa-metragem com produção brasileira, filmada na Argentina e, quando estava a voltar para casa, a Netflix escreveu-me. Trabalhei com o Fernando Meireles que é o diretor da Cidade de Deus. Estive a filmar com eles durante três meses no norte do Brasil.  Portanto, isto tudo vai sair para o ano. Enquanto isso, eu tenho os meus filmes… O Prima ku Lebsi, que é uma curta-metragem que encerra a trilogia, Sonhos de Cor que foi iniciada com Bastien, em 2016, e com a Arriaga, em 2019. Ainda não foi selecionada para nenhum festival aqui em Portugal, mas farei aqui a ante-estreia. Existe ainda um outro filme, Latitude de Fénix, que foi filmado em 2022, em São Tomé e Príncipe, e que virá para o festival Caminhos do Cinema Português.

Acredito que Hollywood está prestes a acontecer. É uma coisa minha, nem está anunciado. Mas é para explicar como se edifica o meu mindset. Eu sei que vou trabalhar com o Denzel Washington, está a caminho! Isso é muito importante para mim. Existe uma presença, uma energia que eu preciso de misturar. Vai-me engrandecer enquanto ser humano e artista. Quero aproximar-me cada vez mais daquilo que eu acho que vibra comigo. Espero que o universo consiga corresponder a esse meu desejo.