Morreu Quincy Jones, o general que liderou a maior ofensiva musical do séc. XX

Aos 91 anos, e depois de sobreviver a um aneurisma, um coma diabético e uma série de outros problemas de saúde, desaparece o homem que teve maior influência na definição do som que ouvimos quando pensamos na América.

Acende um cigarro e estende as mãos sobre o comprimento da mesa. Um ritual do início do mundo. Num estúdio qualquer, com o tempo em suspenso, o mundo depende de uma nota musical. A ele espantava-lhe que nos últimos 700 e tal anos, a música toda se tenha feito a partir de não mais de 12 notas. Mas se depois de uma bem achada, se a seguinte for a única certa, as possibilidades não deixam a luz sucumbir. A entusiasmo para mais mil anos. Afinal, toda a grande música é um sustento para a vida de muitos homens, é um modo de socorre-los, de os alegrar ou consolar a partir desse ímpeto total e instantâneo. Disso Quincy Jones sabia muito.

Para ele a vida residia nessa oportunidade, cada novo dia, podia abrir as mãos sobre a mesa, e lembrar-se do que os que tem ouvido aprendem com o suspiro fundo que une as coisas. «Tudo se escreveu, tudo se disse, tudo se fez, ouviu Deus dizerem-lho e ainda não havia criado o mundo, ainda não havia nada» (Macedonio Fernández). A eternidade é um balanço, mais do que um contínuo. Um outro ritmo que, por vezes, dá sentido onde este estava em falta. Ele disse certa vez que era precisava deixar sempre margem, estender entre 20 a 30% a probabilidade de Deus entrar pela sala. Criar as condições, ser sério com as coisas de que se gosta. Como se Deus não passasse também ele de um mendigo, sempre ansioso por alguma frase, uma linha melódica, uma batida com o seu quê de feitiço, o que quer que seja que possa servir para desfibrilhar este tão desolado milagre.

Por estes dias, abusa-se muito da expressão ‘lenda’, mas a ele nenhuma outra lhe serve. Um miúdo que aos sete anos viu a mãe ser levada para um hospício, que era neto de uma mulher que nascera escrava, que foi deixado juntamente com o irmão aos cuidados de uma outra avô que se habituou a cozinhar de tudo, mesmo ratos, que passou a maior parte dos dias da infância no desamparo das ruas do sul de Chicago, sujeito aos abusos dos tipos mais velhos, e que depressa se muniu de uma navalha para aumentar as suas chances de se desenvencilhar nas tantas alhadas em que se viu metido, foi este miúdo que, um dia, num assalto a um edifício onde estava armazenado um arsenal militar, deu com um piano e deixou que o impulso de experimentar o teclado fosse o sussurro que lhe indicou uma saída. Se Deus também tem os seus dias aziagos, parece que Quincy apanhou a batuta pouco antes atirada ao lixo, e foi ele mesmo atrás de recomeço.

A amizade com Ray Charles

Tinha 14 anos quando nasceu a amizade com Ray Charles, que tinha apenas mais dois anos, mas já falava como um ancião. Aquela geração conhecia a antiguidade do mundo, corria-lhes no sangue que estava afinado, mais vivo devido ao sofrimento acumulado pelos seus ancestrais. Viviam em busca de uma saída, e os dois costumavam dizer que nem uma pinga da sua autoestima dependia da aprovação dos demais. As coisas eram duras demais para se permitirem esse nível de vulnerabilidade. Cabia-lhes viver contra as probabilidades, sabendo que tinham tudo contra eles. Nesse sentido, a música negra, esse ecletismo que eles desbravavam, sempre conteve em doses iguais um elemento de sedução e outro de vingança. Não se lhes podia exigir que ficassem no seu canto.

Tinham a paixão de demasiadas vidas à espera de uma oportunidade, e os seus génios emergiram como uma fabulosa conspiração. Foi pelo ritmo que engendraram a invasão há muito prometida, uma rebelião irrecusável, que viria através desses sentidos que se oferecem primeiro à magia conquistadora do inimigo. Nessa suprema arte da composição, do ouvido que define a estratégia e a forma como a banda ocupa as suas posições, como um exército que capturará a própria alma do inimigo, é inegável que Quincy Jones foi o grande general, a figura central nessa investida que redefiniu a música popular norte-americana ao longo de mais de meio século.

Nos anos 50, depois de, com um trompete nos lábios ter merecido estar na companhia dos maiores músicos da altura, enquanto estes buliam e exploravam através dos ritmos do bebop o alcance mais profundo das suas armas, de acordo com um dos seus cadernos, estava a fazer arranjos a 20 dólares para as grandes bandas e figuras como Cout Basie, Duke Ellington, Tony Bennett, Sarah Vaughan, Dinah Washington e Frank Sinatra e tantos outros. Depois ainda se fez um gigante na composição da música de quatro dezenas de filmes, e tornou-se um dos maiores nomes enquanto produtor musical, tendo sido o principal responsável por orientar a carreira de Michael Jackson, e tendo a sua assinatura no álbum mais vendido de sempre: Thriller.

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