Na madrugada de quarta-feira, quando me fui deitar, a vitória de Trump já se esboçava – embora os comentadores portugueses ainda não a admitissem. Na SIC Notícias, por exemplo, um jovem de nome Jonet dizia ser muito cedo para apontar tendências, e adiantava que daqui e dali vinham «sinais negativos», mas dacolá vinham «sinais positivos». Os ‘sinais negativos’ eram os resultados favoráveis a Trump, os ‘positivos’ eram os favoráveis a Kamala. Ora, como se pode acreditar na isenção de um comentador que se diz 100% favorável a um dos lados?
Mas não era o único.
Paulo Portas, que surgiu na política como um jovem abertamente à direita, falava dos riscos para a Ucrânia de uma vitória de Trump, dizendo que Putin se iria sentar em Kiev e a seguir ocuparia os Bálticos. Mas os Bálticos não pertencem à NATO?
Sérgio Sousa Pinto, que se sentava à sua frente, falava do «drama da América» que consiste em metade do país, os trumpistas, verem o adversário não como tal mas como um agente do mal, adotando um discurso de ódio. Mas os democratas também não diabolizaram Trump, chegando a dizer que ele traria o nazismo? O discurso de exclusão só existia de um lado?
É estranho como pessoas inteligentes podem cair em armadilhas tão primárias.
Poderia continuar a citar nomes, mas não vale a pena.
Na quarta-feira de manhã, quando me levantei, o discurso era completamente diferente. Todos os comentadores, sem exceção, explicavam as razões da derrota de Kamala e da vitória de Trump.
Com grande convicção, diziam que a derrota de Kamala era previsível, dados os erros cometidos pelo Partido Democrata.
Nem por um momento faziam um exame interior: por que motivo não disse ontem o que estou a dizer hoje? Por que dizia ontem que estava tudo em aberto e hoje estou hoje tão convicto das razões que levaram Kamala à derrota?
Explicar o que se passou depois de conhecer o resultado não tem valor nenhum – o que é difícil é perceber antes o que se vai passar, e ser capaz de o dizer com honestidade.
Mais uma vez ficou à vista que a esmagadora maioria dos nossos comentadores não tem qualidade, não tem coragem e não tem pudor.
Não tem qualidade, porque é incapaz de fazer antes dos acontecimentos análises corretas, ajustadas à realidade.
Não tem coragem, porque prefere ir a favor do vento do que ter opiniões diferentes, eventualmente impopulares.
Não tem pudor, pois diz muitas vezes no dia seguinte às eleições o contrário do que disse na véspera.
Não vou fazer futurologia mas é possível escrever meia dúzia de notas sobre o próximo futuro, embora ressalvando a imprevisibilidade de Trump (que, no entanto, é mais verbal do que real).
1. Trump não vai acabar com a democracia na América. Ele não vem de Marte – já foi presidente dos EUA e a democracia manteve-se forte. A democracia na América está muito enraizada, a América é talvez o país mais democrático do mundo, e não é um homem que pode destruí-la.
2. Trump vai querer acabar com a guerra na Ucrânia, como prometeu, mas não vai ceder a Putin em toda a linha. Sendo a Rússia e os EUA inimigos assumidos, Trump não quererá ficar para a História como o homem que estendeu uma passadeira vermelha a Putin na Europa. A propalada boa relação de Trump com Putin até pode ajudar. Com Kamala é que não havia esperança nenhuma de o conflito se resolver: a perspetiva era simplesmente a eternização da guerra.
3. Trump vai cortar algumas pontes com a Europa, o que só pode ser bom. A Europa tem de crescer, não pode ser um adolescente imberbe que pede ajuda ao paizinho sempre que tem um problema. Já foi assim na 1ª guerra mundial, foi assim na segunda, já é tempo de a Europa se emancipar.
4. Trump vai combater a cultura woke, o que é uma boa notícia. O wokeísmo, que é uma das grandes ameaças à liberdade e nos trouxe ideias absurdas e destrutivas como a identidade de género, sofre um duro revés.
Em suma, não é tudo mau na vitória de Trump, como os comentadores nacionais não se cansaram de nos dizer durante longos meses. Há perigos, mas também há vantagens – como em tudo na vida, aliás.
Finalmente, gostaria que este resultado servisse de lição às nossas estações televisivas, que não levaram a estúdio um só comentador favorável a Trump – enquanto se sucediam, às dezenas ou centenas, os comentadores apoiantes de Kamala.
Até no tema da Ucrânia há mais pluralismo, com a regular presença em antena de comentadores ostensivamente pró-russos, como os generais Carlos Branco e Agostinho Costa, e outros independentes, como Tiago André Lopes ou o coronel Mendes Dias.
Por que razão isto não acontece relativamente aos EUA?