Valência transformou-se num cenário digno de um filme de terror em apenas umas horas. Talvez não se pudesse imaginar uma catástrofe que viria a ser classificada como a maior do Século, mas os avisos foram sendo lançados. E igualmente ignorados.
No dia 25 de outubro, a Agência Estatal de Meteorologia espanhola (Aemet) publicava na sua conta oficial a formação do fenómeno conhecido por DANA – «depressão isolada a níveis altos» – DINA, em português. Não se trata de um fenómeno desconhecido no país vizinho, e talvez isso até pudesse explicar uma eventual desvalorização inicial.
Mas no dia 27 de outubro a Aemet voltava a reforçar o aviso. Mais: sublinhava que no dia seguinte, 28, começaria «a parte mais adversa do episódio», que atingiria o seu «pico» na terça-feira, dia 29. Apesar dos alertas sucessivos a mensagem não chegou à população. Pelo menos não chegou a tempo.
Muitos valencianos acordaram naquele dia e fizeram a sua rotina normal. Só quando muitos deles já se encontravam a lutar pela vida, a notificação geral recebida através da rede nacional de alerta disparava nos telemóveis. Era demasiado tarde. Pelo menos para mais de duas centenas de pessoas foi demasiado tarde.
Salvaram-se as vidas possíveis – de janelas de casa, com cordas improvisadas e uma força sobre-humana capaz de desafiar a força da natureza. Ficam registos de saltos de fé sem segundas oportunidades entre tejadilhos de carros. Ficam vídeos de destruição. Ficam gestos de coragem e atos heróicos.
E fica a solidariedade de um povo que continua agarrado a um lema quase centenário, da autoria do poeta Antonio Machado durante a Guerra Civil espanhola: «Solo el pueblo salva el pueblo».
Revoltada, a comunidade valenciana atirou lama aos que considerou serem os principais responsáveis pela hecatombe. É pouco para quem vê um governo a passar culpas entre si. Também não sobrava mais nada, além da lama, para arremessar depois do dilúvio.
Enquanto se esperam medidas ajustadas à desgraça, os voluntários atuam. E reportam aquilo que só quem lá está consegue descrever: o cheiro insuportável, os riscos de infeção e as batalhas inglórias para drenar camadas de lama que se tornaram demasiado espessas para quem trabalha à base do espírito de sacrifício. Um trabalho que obviamente não pode ficar entregue às mãos da boa vontade.
E uma noite que não pode cair no esquecimento.