Valência. “Achei que era o fim”. O relato de quem sobreviveu às inundações

Adalina teve de esperar cinco dias, sem luz, comida e água, até ser resgatada pela Cruz Vermelha. Alejandra ficou presa com as filhas bebés numa casa completamente inundada e só foi salva graças a um vizinho. Inundações em Valência deixaram milhares de mortos e desalojados e uma população revoltada com a falta de respostas.

«A água continuava a subir e eu liguei para a minha família para me despedir», desabafa Adalila Calero, uma emigrante do Nicarágua, que estava há três meses a viver em Picanya, um dos 65 municípios de Valência afetados pela depressão DANA, que provocou fortes inundações na região. No dia 29 de outubro, Adalila estava com o marido e os dois filhos, de 4 e 2 anos, num hotel administrado pela Cruz Vermelha Espanhola, onde vivia com mais de 200 pessoas.

«Eram 18h20 quando se começou a formar um rio na rua. Primeiro achei que era algo normal, ainda não tinha visto as notícias. Estava a jantar e pouco tempo depois ouvi os gritos dos cozinheiros a dizer que a água estava a entrar no hotel. Subi para o primeiro andar e foi aí que vi nas notícias que a água já tinha levado três pontes em Picanya e uma em Paiporta. Antes das 20h a água já tinha inundado o rés-do-chão e estava a subir para o primeiro andar. Subimos para o terraço do prédio e começámos a ver a água a levar carros, árvores, bicicletas. Foi uma sensação horrível».

O primeiro alerta das autoridades a recomendar que as pessoas não saíssem de casa só chegou às 20h, quando as inundações já tornavam impossível o acesso a algumas habitações. Adalila recorda os momentos de desespero quando percebeu que poderia não sobreviver. «Nas redes sociais já se viam notícias de mortes e cidades inteiras submersas, então a primeira coisa em que pensei foi nos meus filhos pequenos: ‘o que posso fazer para salvá-los, mesmo que eu morra?’. Chorei muito, tive um ataque de ansiedade e precisaram de me acalmar. Sentia que não conseguia respirar. Sentia-me submersa naquela água, na lama, e o meu corpo pesado».

O apoio tardava em chegar e a Cruz Vermelha não atendia as chamadas e os pedidos de evacuação. Quando amanheceu, não havia água nem eletricidade e começaram a recorrer à comida que restava no hotel. «Alguma comida já estava estragada no segundo dia, mas era o que tínhamos. Ficámos dias sem tomar banho e as crianças choravam de fome», conta Adalila. «A Cruz Vermelha só apareceu no terceiro dia e sem soluções. Traziam-nos comida, mas não evacuavam o local. Como é possível que uma entidade tão grande como a Cruz Vermelha não tivesse uma solução? Diziam que era porque não havia acesso, mas as pessoas que queriam ajudar vinham a caminhar uma hora desde Valência».

Passados cinco dias, o hotel foi finalmente evacuado. Nas ruas, o ambiente era de entreajuda. As pessoas que passavam ofereciam comida e as escolas disponibilizavam lanches para as crianças. Adalila conseguiu um apartamento para morar com a família, com ajuda dos pais de colegas de turma dos filhos, que também lhes doaram roupas e móveis. «Graças a Deus, como dizem os próprios valencianos: ‘O povo salva o povo’ Não foi a polícia, nem a Cruz Vermelha, nem o Governo, nem Mázon. Foi o povo«.

Os atrasos nos alertas antes da tragédia a demora exagerada na reação e ajuda às vítimas têm sido motivo de revolta por parte da população das zonas afetadas pela tempestade. Se dúvidas houvesse, no passado domingo ficou traçado o retrato do estado de indignação de uma população que reclama a falta de recursos e resposta atempada pela parte das autoridades. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, e os reis de Espanha foram recebidos com insultos e arremessos de lama e objetos, numa visita a uma das áreas mais atingidas pelas inundações. Entre os gritos e palavras de ordem podia ouvir-se «Assassinos!» ou «As pessoas estão a morrer e vocês vêm agora?». O chefe do Governo acabou por abandonar o local mais cedo, mas os monarcas ficaram para ouvir os desabafos dos habitantes. Pelo menos 60 das vítimas mortais encontravam-se na localidade valenciana de Paiporta, que ficou conhecida como “zona zero”.

O Governo acusou a extrema-direita de ser responsável pelos incidentes violentos de domingo e de «se aproveitar do mal-estar da população», mas Bruxelas considerou «compreensíveis» os protestos das vítimas. «É normal que as pessoas expressem os seus sentimentos. Compreendemos a profundidade da raiva nestas circunstâncias. O que é importante é que todos façam o seu melhor para ajudar os cidadãos de Valência e da região», disse Eric Mamer, porta-voz da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Enquanto Carlos Mazón, presidente da Comunidade Valenciana culpa os comandos militares militares, as Forças Armadas de Espanha garantem que só não atuaram mais cedo porque não receberam um pedido do governo autónomo, como está legalmente previsto. O chefe-general da Unidade Militar de Emergências (UME), Javier Marcos, garantiu ao El País que «desde o primeiro momento, todas as capacidades das Forças Armadas foram postas ao serviço da Comunidade Valenciana».

Nesta altura, quase oito mil militares estão no terreno, a juntar aos milhares de voluntários que tentam compensar a inação das autoridades. Certo é que, em muitos casos, a ajuda nunca chegou.

‘Percebemos que ninguém nos vinha resgatar’

Sharon Alejandra acordou na manhã do dia 29 de outubro naquele que parecia ser mais um dia normal. O marido estava fora em trabalho e ela em casa com as duas filhas bebés, de 2 anos e de 5 meses, e a mãe. A noite tinha sido chuvosa e algumas partes da sala estavam molhadas, mas ainda nada fazia prever o cenário das próximas horas. «Às 10h o vizinho chamou-me para avisar que se tinha formado um rio em frente da minha casa. O nível da água começou a subir muito rápido. Liguei à polícia para pedir se nos podiam tirar dali porque não tínhamos forma de sair com carro. Disseram-nos para ter calma e aguardar», conta. «Com o passar do tempo os quartos começaram a ficar inundados e água estava a subir muito rápido. Às 18h a água lá fora já chegava a mais de um metro e o nosso carro estava submerso. Estava desesperada e não sabia o que fazer. Os serviços de emergência só nos pediam para esperar».

Ao final do dia, os ventos e chuva forte acabaram por derrubar uma árvore grande que partiu completamente uma janela, deixando a casa exposta à água do lado de fora. «Foi aí que perdi completamente a esperança, pensei que era o fim. Liguei ao meu marido e despedi-me, agradeci-lhe por tudo, disse que o amava muito e resignei-me a esperar o pior», recorda Alejandra, visivelmente emocionada. «A minha bebé de dois anos estava assustada e sem entender o que se passava. A certa altura ela própria gritava: ‘Chuva, pára já! Vai-te embora!’».

Durante a noite a chuva acabou por acalmar. Quando a luz do dia entrou pela janela, Alejandra tentou abrir a porta de casa – que estava bloqueada pela lama –, sem sucesso. Ao olhar pela janela, o cenário era desolador, com as ruas tomadas pela lama e pelos escombros. Finalmente, ao avistar um vizinho e a esposa, gritou por ajuda. Do outro lado, a resposta: «Estão vivas?».

Com a ajuda dos vizinhos, Alejandra e a família conseguiram abrir a porta. «Assim que conseguimos sair começámos a chorar. Ficou tudo destruído, mas pelo menos estamos vivas. Neste momento, estamos à procura de uma casa onde possamos recomeçar a nossa vida e dar tranquilidade às nossas filhas».

A localidade de Cheste, onde moravam, foi gravemente afetada pelas inundações e obrigou inclusive ao cancelamento do Grande Prémio de Valência de MotoGP, que se iria disputar na região.

Sánchez VS. Mazón a polémica depois da tragédia

Mais de uma semana depois da tragédia, Valência continua a contar os mortos e as centenas de desaparecidos. As operações de resgate e de limpeza prosseguem  na sequência de uma das piores inundações das últimas décadas na região.

Até terça-feira estavam confirmados 211 mortos, mas os números deverão aumentar. O chefe da Unidade Militar de Emergências (UME) admitiu que as autoridades colocaram à disposição uma morgue que tem capacidade para 400 mortos. De acordo com o_El País, o secretário-geral do Grupo Parlamentar do Vox, José María Figaredo, acusou o Governo de esconder e dissimular o número de vítimas mortais .Enquanto a cidade se tenta reerguer, surgem cada vez mais acusações e tentativas de responsabilização pela aparente gestão deficitária da catástrofe. Carlos Mazón, presidente da Generalitat valenciana, sacudiu as culpas pelos erros na gestão para o governo central, mas Pedro Sánchez tem evitado entrar em choque o Governo regional.

Mazón começou por responsabilizar a Confederação Hidrográfica de Júcar (CHJ) pelo envio tardio do alerta para os telemóveis. No entanto, dados da Confederação Hidrográfica desmentem  estas afirmações. De acordo com o jornal espanhol El Diario, os serviços de Emergência – sob a responsabilidade de Carlos Mazón – receberam uma notificação de alerta às 17h30; mas não emitiram alerta hidrológico.

Já o líder da oposição espanhola, Alberto Núñez Feijóo (PP), pediu esta segunda-feira uma declaração de emergência nacional devido à catástrofe da DANA, sugerindo que o Governo central assuma o controlo em vez da Generalitat, liderada por Carlos Mazón.

Sanchéz já respondeu, argumentando que «substituir a Generalitat seria reduzir a sua eficácia» e que «os cidadãos não querem ver as suas instituições a lutar, mas a trabalhar lado a lado».

O primeiro passo para agilizar e desbloquear fundos para responder ao impacto das inundações foi dado esta terça-feira, com a declaração formal de Valência como uma “zona de catástrofe”. O primeiro-ministro espanhol revelou que o Conselho de Ministros aprovou já um primeiro pacote de ajudas no valor de 10.600 milhões de euros a famílias, empresas e autoridades locais.