Chuvas torrenciais e falta de prevenção marcam Espanha e ameaçamo sul de Portugal

Chuvas intensas e inundações devastaram Valência e Málaga, provocando mais de 200 mortes e prejuízos colossais. Depois de vários protestos, o governo espanhol anunciou mais fundos para a recuperação. No sul de Portugal, espera-se mau tempo e há risco de inundações.

As últimas semanas têm trazido chuvas intensas e catastróficas para a região mediterrânica, especialmente em cidades como Málaga e Valência, afetadas por sucessivos episódios de gotas frias – fenómenos meteorológicos conhecidos pela capacidade de gerar chuvas torrenciais.
Este tipo de evento, também chamado DANA (Depresión Aislada en Niveles Altos), ocorre quando massas de ar frio, isoladas da corrente de jato (provocada pela rotação do planeta Terra e pela variação de temperatura entre os trópicos e os polos do planeta), entram em contacto com águas quentes e altamente húmidas, criando um cenário perfeito para tempestades extremas. Recentemente, a situação em Málaga, devastada por inundações, evidenciou a combinação entre o clima e a urbanização desordenada, enquanto as cidades do sul e centro de Portugal se preparam agora para possíveis desdobramentos desses fenómenos.
Em Málaga, a gota fria que chegou à cidade foi marcada por um núcleo de ar polar continental, cujo choque com o ar quente do Mediterrâneo intensificou as precipitações. Segundo o editor-chefe e especialista da Meteored Portugal, Alfredo Graça, foi o «forte gradiente térmico entre o ar quente do Mediterrâneo e o ar frio de origem polar continental» que «esteve na origem da torrencialidade das chuvas». Esta gota fria, ao encontrar um Mediterrâneo mais quente do que o habitual, desencadeou um processo explosivo de evaporação e condensação, alimentando uma tempestade violenta que assolou a região.

Falta de planeamento urbano
Em Valência, a situação foi ainda mais alarmante. Durante os dias 28, 29 e 30 de outubro, a cidade viveu uma gota fria extremamente prolongada, com chuvas torrenciais que permaneceram quase estacionárias, atingindo as mesmas áreas por horas consecutivas. Alfredo Graça explica que «a sociedade civil sofreu na pele um evento catastrófico» em parte pela ausência de uma cultura de prevenção. O fenómeno foi previsto pela AEMET, a agência meteorológica espanhola, e outros meteorologistas com uma semana de antecedência, e o alerta vermelho foi emitido na manhã de 29 de outubro. No entanto, a resposta das autoridades locais foi insuficiente e tardia. Os alertas via SMS só foram enviados pela Proteção Civil após as 20h daquele dia, horas depois de as enchentes já terem causado danos significativos.
Os especialistas concordam que, embora as condições meteorológicas tivessem um papel central, uma parte importante da devastação poderia ter sido evitada. Segundo Alfredo Graça, a AEMET «cumpriu muito bem o seu papel enquanto instituição pública» ao emitir alertas. Mesmo um aviso laranja, destaca, «já requer muita precaução no sentido de atuação das autoridades», mas as medidas de contenção e evacuação adequadas não foram aplicadas. A resposta do governo regional foi vista por muitos como um fracasso: no mínimo, a circulação de pessoas e veículos, o funcionamento de escolas e locais de trabalho deveriam ter sido suspensos.
O aumento das temperaturas no Mediterrâneo também tem intensificado a força das gotas frias, exacerbando a sua capacidade de provocar chuvas torrenciais. «Temperaturas elevadas da água do Mar Mediterrâneo», explica Alfredo Graça, «resultam num aumento da taxa de evaporação e num teor de humidade mais elevado», o que serve como «combustível à precipitação». Em Valência, essa situação não é inédita – «é preciso relembrar que já foi fortemente afetada por dezenas de vezes no último século, salientando-se os anos de 1957 e 1982» –, mas o desordenamento urbano tem tornado a cidade cada vez mais vulnerável.

Erros na gestão da crise
O presidente da Comunidade Valenciana, Carlos Mazón, admitiu pela primeira vez que «podem ter sido cometidos erros na gestão da crise» após as inundações. Mazón, alvo de duras críticas pelo atraso nos avisos e pela resposta lenta às vítimas, disse que daria explicações ao Parlamento Regional esta quinta-feira e que considerará mudanças no seu governo. No passado fim de semana, manifestantes em Valência e Madrid pediram a sua demissão.
O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, anunciou mais 3,8 mil milhões de euros em apoio à região, além dos 10,6 mil milhões previamente destinados, com medidas para a limpeza urbana e saneamento. Apesar de Mazón ter solicitado mais camiões para desobstruir a rede de esgotos e evitar riscos para a saúde pública, o ministro da Política Territorial afirmou que a resposta já inclui o maior contingente de apoio mobilizado em tempos de paz em Espanha.

A ocupação do solo
As gotas frias no Mediterrâneo são fenómenos que tendem a ocorrer com certa frequência, mas a ocupação inadequada do solo tem agravado as consequências desses eventos. Alfredo Graça ressalta que «a água tem ‘memória’» e que, por efeito da gravidade, «tende a correr ou a escoar nos sítios e locais em que é suposto correr» quando ocorre precipitação intensa. No entanto, o crescimento urbano desordenado, com infraestruturas construídas em leitos de rios e áreas de escoamento natural, dificulta esse fluxo. Ruas, estradas e edifícios foram erguidos em áreas que, sob condições naturais, deveriam acumular água. Como resultado, enchentes e inundações são praticamente garantidas sempre que uma gota fria atinge essas regiões.
Este tipo de ocupação territorial contribuiu diretamente para o impacto severo em Valência e Málaga. A situação é agravada ainda pela escassez de chuvas durante longos períodos, deixando o solo seco e gretado. Essa condição reduz a capacidade de absorção do solo, resultando em inundações rápidas quando grandes volumes de água caem em pouco tempo. «Quando os solos estão muito secos e gretados e recebem quantidades extraordinárias de precipitação, como em Valência, onde caíram quase 800 mm num dia, não têm a capacidade de absorção e infiltração necessárias», explica Graça.
Alicante: Uma Solução Possível
No entanto, há exemplos positivos que podem servir de modelo. Alfredo Graça cita a cidade de Alicante que, após a devastadora ‘Pantanada de Tous’, na década de 90, implementou sistemas de infraestrutura anti-inundações que protegem a cidade contra episódios de chuvas extremas. «A cultura de prevenção, e não a de reação, pode e deve ser aplicada se construirmos este tipo de planos e infraestruturas», sugere. Este tipo de planeamento preventivo, voltado para a adaptação ao clima, é o que falta noutras cidades da região.

Riscos em Portugal
A trajetória atual da gota fria dirige-se para o oeste-sudoeste, aumentando o risco de chuvas intensas e tempestades nas regiões do Algarve, Baixo Alentejo, e áreas metropolitanas de Lisboa e Setúbal, bem como Santarém. Graça alerta que, embora o Atlântico seja mais frio que o Mediterrâneo, o que tende a suavizar o impacto das gotas frias em Portugal, ainda é necessário estarmos atentos. «É sempre preferível estar precavido do que não estar», comenta o especialista, reforçando que eventos de natureza caótica, como as gotas frias, podem facilmente desviar-se e atingir regiões inesperadas. Além das chuvas intensas, há risco de trovoadas, queda de granizo e tornados localizados, com potencial para inundações e cheias rápidas em áreas suscetíveis. A Proteção Civil e autoridades locais devem monitorizar de perto o desenrolar da situação meteorológica e adotar uma postura preventiva.
Os episódios de gotas frias como os que afetaram Málaga, Valência e possivelmente afetarão partes de Portugal nas próximas horas são sinais de que a região mediterrânea precisa de repensar o seu planeamento urbano e adotar políticas de prevenção mais rigorosas. Alfredo Graça alerta que, enquanto o Mediterrâneo continua a aquecer devido às mudanças climáticas, as cidades da região deverão enfrentar gotas frias com maior intensidade e frequência. A implementação de sistemas de infraestrutura anti-inundação, aliada a uma gestão urbana consciente e preventiva, é essencial para proteger as populações e reduzir o impacto de eventos naturais que, embora previsíveis, têm se tornado catastróficos pela falta de preparação.