O Matuto sempre teve uma relação difícil com o seu nariz. Causa de maleitas várias, desde alergias a gripes comuns, o nariz Matutino nunca foi muito ágil. Por exemplo, a gentil esposa do Matuto, Dona Sirlei, comenta que o ar cheira a jasmim, que o bouquet do vinho lembra frutas vermelhas, que o leite cheira a estragado… Enfim, uma miríade de aromas que o Matuto não frequenta. Se houvesse uma Pantone de cheiros (tal como existe para as cores), Dona Sirlei seria a sua inventora.
Mas, adiante que se faz tarde. Um dia destes estava o Matuto e a sua gentil esposa, Dona Sirlei, na fila (essa da bicha já foi chão que deu uvas!) dum café da cidade que tão gentilmente acolheu o Matuto no seu seio, para pagar a conta. À frente na fila, um casal jovem. Bonitinhos. Modernos. Aí, ele diz: “você paga!?”. Ela responde indignada: “o seu nariz!” O Matuto ficou impressionado com a violência da resposta. Ainda mais impressionado ficou o Matuto pelo que pode ler nas entrelinhas: certamente que esta moça moderna tinha valores que incluíam a ideia de cavalheirismo. O homem ainda paga a conta do café e ainda abre a porta do carro e ainda deixa a dama passar à sua frente. Huuummm – matuta o Matuto. Tudo isto num simples “o seu nariz”.
A verdade é que o apêndice nasal é chamado à liça de muitas formas – comenta o Matuto. O órgão do olfato, tão nobre quanto saliente, tem insinuado muitas atitudes feéricas: “se me chega a mostarda ao nariz”; “bateu com o nariz na porta”; “todo senhor do seu nariz”; “não metas o nariz onde não é chamado”; “não vê um palmo à frente do nariz”; “torcer o nariz”; “ter nariz arrebitado”; “esse tem nariz de cera”; “ele tirou o nariz da lama”; “anda sempre de nariz no ar”. Culturalmente, o nariz sempre foi infeliz – que se esborracha, que é grande demais, que pede uma intervenção plástica, que vira bizarro instrumento musical quando confrontado com um lenço, que funciona como passagem de mucos e mucosas e melecas e que frequentemente provoca o indicador de criancinhas inocentes e de motoristas parados no semáforo.
Já a literatura dá conta duma certa ironia que envolve o nariz – assegura o Matuto. O Pinóquio de Carlo Collodi tinha um famoso nariz que crescia quando mentia, mas Cyrano de Bergerac ostentava o narigão como símbolo de genialidade embora inseguro nas questões do amor. Nikolai Gogol escreveu uma sátira surreal, chamada O Nariz, em que um homem perde o seu nariz, que ganha vida própria e alcança uma posição social superior. A história aborda questões de identidade que Perfume de Patrick Suskind exagera ao ponto do seu protagonista se desconectar moralmente da humanidade. Shakespeare, o eterno bardo, usa o nariz como símbolo de orgulho, como em Much Ado About Nothing, onde há uma referência ao “nariz de desprezo”.
Entretanto, o Matuto dá de caras – com o nariz a abrir caminho – com uma referência ao nariz na Bíblia. Em Êxodo 34:6 lê-se: “Senhor Deus compassivo, clemente e longânimo…” “Longânimo” em hebraico pode ser traduzido literalmente como “nariz longo”. Para destacar a infinita paciência de Deus, o autor bíblico diz que o Senhor tem um nariz comprido. Ou seja, Ele demora a zangar-se. Vejamos, longanimidade é a tradução da palavra grega makrothumia – makro (grande) e thumos que deriva de thuos (respiração). A ideia é que uma respiração longa atrasa a chegada do ar aos pulmões e evita a explosão de raiva. No Nordeste Brasileiro existe uma expressão curiosa: “Pegar ar”, sinónimo de ficar com muita raiva. Trata-se de uma expressão interessante, pois reflecte bem o processo de fúria. A pessoa irada respira fundo e, quando o ar chega aos pulmões, sai de baixo, porque vem aí chumbo grosso. Se a pessoa “pega ar”, ela fica verde e vira o incrível Hulk. Longanimidade é um dos “frutos do Espírito”, lembra Dona Sirlei ao Matuto. Pois é!
O espaço é curto para o Matuto falar de narizes famosos, como o de Cleópatra que levou Pascal chegou a escrever: “Se o nariz de Cleópatra fosse mais curto, o rosto do mundo seria diferente”; ou o de Barbra Streisand que o usa como marca registada; ou o nariz aquilino – como bico de águia, elucida o Matuto – de Napoleão cujo tamanho existia na razão inversa da sua estatura. E que dizer, questiona o Matuto, do célebre esfregaço de narizes que o Papa João Paulo II teve com um chefe nativo dos Maoris!? Porventura, sua santidade queria dar início à reabilitação social do nariz. O Matuto não sabe em que medida a experiência neozelandesa terá afectado pessoalmente João Paulo II, todavia o Matuto constata que o Papa foi a África, meter o nariz onde não era chamado, o que suscitou um enorme torcer de narizes, que lhe valeu um cartoon de António, onde o Papa aparece com um preservativo (camisinha, no Brasil, por favor) no nariz. Tudo isto estimulou uma tremenda confusão de narizes – remata o Matuto.