Alter Ego

Querida avó, Folheio o livro Alter Ego, do nosso amigo António Homem Cardoso, enquanto te escrevo esta carta. Imagina um espelho mágico à frente do qual cada um se interroga: «Que gostaria eu de ser se a vida não me tivesse empurrado para os caminhos ínvios da arte?»Foi desta forma que o Mestre Homem Cardoso…

Querida avó,

Folheio o livro Alter Ego, do nosso amigo António Homem Cardoso, enquanto te escrevo esta carta. Imagina um espelho mágico à frente do qual cada um se interroga: «Que gostaria eu de ser se a vida não me tivesse empurrado para os caminhos ínvios da arte?»
Foi desta forma que o Mestre Homem Cardoso definiu o conceito por detrás deste lindíssimo livro. Um livro de fotografia diferente de todos os outros a que já deu vida – e o seu percurso conta com mais de uma centena de obras publicadas.
Através da lente de Homem Cardoso, vemos nomes incontornáveis do mundo artístico português como se a ele nunca tivessem pertencido. Da câmara do Mestre saiu um universo alternativo, onde cada um dos retratados é representado de acordo com a vida que poderiam ter seguido, caso a arte não tivesse sido o caminho que percorreram. O resultado é um livro mágico, que revela tanto a imaginação dos fotografados quanto a de quem os retratou, numa mistura de fantasia e sensibilidade que apenas está ao alcance de quem tem dedicado a vida a transformar luz e momentos em imagens eternas.
Os nossos amigos Júlio Isidro e Ruy de Carvalho gostariam de ser aviadores, o António Sala realizador. O nosso querido Aurélio Carlos Moreira maestro. O Carlos Alberto Moniz forcado… Como não podia deixar de ser, o Alter Ego da grande Simone de Oliveira é a Rainha D. Amélia. Uma centena de imagens que contam estórias e ficaram para a história. A venda do livro reverte a favor da Apoairte. Essa bela herança sonhada, e realizada, por Raul Solnado, Armando Cortez, Manuela Maria, Cármen Dolores… entre outros.
A minha mãe diz que eu, em pequeno, queria ser cozinheiro ou pasteleiro. Como sabes, ainda hoje mantenho os dotes para a culinária. No entanto, o meu Alter Ego certamente é ser apresentador de televisão, ou escritor (sem ser apenas de cartas para a avó).
O teu não preciso perguntar qual é.

Bjs

Querido neto,

Como bem sabes, o meu Alter Ego é a Alice no País das Maravilhas. Falaste de tantos atores que, não sei porquê, mas lembrei-me do Charlot. Que nunca me fez rir.
Lembro-me de ser criança, olhar para a miudagem que enchia a sala do cinema Capitólio, em Lisboa, todos riam às gargalhadas e saltavam das cadeiras e batiam palmas.
Mas, sob o seu chapéu de coco e a bengala a dançar entre os seus dedos – parecia-me ter sempre os olhos fixados em mim.
E a raiva que eu sentia por não ter sido eu a criança abandonada a ir parar às suas mãos. Por não andar a fugir aos chuis. Ou a partir vidros. Ou a roubar comida. Durante muito tempo ainda pensei que um dia ele viria ao meu encontro, me havia de resgatar dos longos corredores escuros e do desamor das tias que me criavam, que havia de me levar pelo meio de todos os circos do mundo, nem que fosse só para aldrabar a polícia.
E havíamos de fugir pelas montanhas do Alasca, sempre a proteger-me, sem medo dos brutamontes que surgiam de todos os cantos, sorrindo para mim, comendo botas velhas, que escorreriam decerto sabores de mel pelos atacadores.
E eu iria estar sempre a seu lado e havia de ajudar a varrer ruas e a ganhar lutas com pugilistas, com o dobro do seu tamanho, tudo para que a rapariga cega pudesse um dia ver a beleza do mundo.
Depois cresci, morreram as tias, acabaram-se as matinés no Capitólio.
Mas o Charlot continuava a olhar para mim – só que de outra maneira, enquanto fazia girar o mundo entre os seus dedos.
E então fez-me entender que os seres humanos devem viver para a felicidade do próximo, e, em tempo de guerra, exortava os soldados a lutarem pela liberdade contra todas as ditaduras do mundo.
Fez-me sobreviver à infância e à adolescência.
Nunca o esquecerei.
Talvez por isso nunca me fez rir.
Quero muito esse livro do nosso amigo Homem Cardoso. Compras para a avó, por favor?

Bjs