À distância vejo umas imagens do Croácia-Portugal para a Liga das Nações. Um jogo sem história é um jogo com História. Pela última vez o Carlos Godinho esteve sentado no banco da selecção nacional e eu já nem me lembro da primeira vez que o vi sentado ali. Foi funcionário da Federação Portuguesa de Futebol desde 1974 e em 1991 passou a ser o coordenador da equipa principal. Atribuam-lhe os cargos que quiserem, pouco importa. Team Manager é estrangeiro demais para mim e redutor para ele. Ele foi até agora o Senhor Selecção. O homem que esteve em todos os momentos, de tristeza profunda e de talvez inesperada e incomparável felicidade, do Portugal que saiu do mais básico amadorismo à maior das competências. E ele é um símbolo de competência.
Em 1991 comecei a seguir a selecção nacional como jornalista de A Bola. Não foi fácil. Éramos um pequeno grupo de jovens repórteres que sonhava ter capacidade para substituir os grandes nomes que estavam à nossa frente. E n’A Bola, a filosofia do enorme Vítor Santos fazia da equipa de Portugal uma espécie de filha querida das Cinco Letras Mágicas, a mesma filosofia que foi seguida por Joaquim Rita, o seu sucessor. O Chefe gostava da selecção desde o tempo em que perdia mais do que ganhava, e fazia com que todos, naquilo que sempre chamou a sua pequena loja de sapateiro, a tratassem com um carinho particular. A nossa vez chegou. Os Mestres morreram todos.
Já conhecia o Carlos das selecções jovens e criámos, a pouco e pouco, uma relação de confiança absoluta e de amizade firme. Ao fim ao cabo ele, pelo meio de todas as tarefas com que estava assoberbado, assumia também o papel de lidar com a imprensa. Grande Carlos! O que ele tinha de aturar! Nestes 33 anos que entretanto voaram como só os anos voam, a sua entusiasmada dedicação e o seu intocável profissionalismo fizeram-no passar por tudo. E ele continuou, infatigável, a cumprir o seu Destino. Tenho uma memória grande. Sigo o lema de Edmond Dantés, o Conde de Monte Cristo: «Nem esquecimento nem perdão». O Carlos pode ser um homem duro quando precisa de ser duro, mas tem, ao mesmo tempo, uma capacidade de perdoar (não acredito que esqueça) que não me assiste. Porque, não tenham dúvidas, sofreu injustiças quando merecia elogios, talvez até minhas, não o recuso, no momento em que dar notícias ia de encontro à necessidade de, na selecção, se manterem segredos. Foi, porque o é, um Homem justo. Soube sempre distinguir o trabalho das relações pessoais. E soube sempre respeitar o nosso trabalho. Obrigado amigo também por isso.
O abraço
Teria momentos sobre momentos sobre momentos para contar episódios que nos ligaram. Talvez um dia, com mais tempo e mais espaço, noutro lugar. Ou talvez nunca. Há coisas que ficam para nós. A qualificação para a fase final do Europeu de 1996, em Inglaterra ainda por cima, onde os Magriços mostraram pela primeira vez Portugal ao mundo inteiro, acabou por transformar-se num objectivo para o qual a grande maioria dos jornalistas também se dedicou. E estivemos em Sheffield, em Nottingham e na derrota de Birmingham, frente à República Checa, todos do mesmo lado. O dr. Joseph Wilson fazia, como podia, o seu trabalho como assessor de imprensa. Mas era o Carlos que vinha sempre em nosso socorro nas alturas difíceis. Nunca ficámos sem apoio. A selecção caminhava a passos firmes para o futuro vinte anos depois da última fase final onde estivera. Depois disso esteve em todas, menos em França em 1998. Em todas o Carlos teve uma importância inapagável.
2000 foi a primeira das suas quatro meias-finais de Campeonatos da Europa. Quem pode orgulhar-se disso? 2002 foi o desastre da Coreia e a vergonha de Incheon. Acredito que o seu momento mais triste e mais duro. Como escreveria um dos meus mestres, Alfredo Farinha: «A grande devassa da selecção nacional!» Era preciso não só reerguer uma equipa humilhada mas também revolucionar a organização interna de toda a máquina que a suportava. Gilberto Madaíl foi buscar Luís Felipe Scolari. Carlos Godinho foi o seu braço direito e poucos saberão as tormentas que teve de aguentar no início da primeira fase do campeão do mundo pelo Brasil como seleccionador nacional. Entre 2003 e 2006, coube-me a tarefa se ser eu o assessor de imprensa da equipa portuguesa. Trabalhávamos juntos, num andar anexo ao Hotel Amazonas, em frente ao Estádio Nacional. Depois dos anos em que passei em A Bola (menos o último), nunca fui tão feliz naquilo que fiz profissionalmente. Um grupo incrível de amizade, camaradagem, respeito, educação e comprometimento. Vinte anos depois continuamos juntos e estamos juntos sempre que é possível. Scolari, que ficou para mim como um irmão mais velho, colheu os frutos dessa alegria do País Triste em 2004 e 2006, quando pela primeira vez uma equipa de Portugal atingiu uma final do Campeonato da Europa e, logo a seguir, uma meia-final de um Campeonato do Mundo. Mas havia por todo o lado a mão do Carlos e eu sei como o Luiz tem por ele uma amizade extrema. Com eles a meu lado o difícil fez-se tantas vezes simples. Obrigado Carlos! Mais uma vez.
Estive em Paris, no Estádio de França, no dia 10 de Julho de 2016, na bancada de imprensa, afinal o meu lugar. Ao olhar para o relvado, onde estavam muitos amigos meus, pensei na felicidade que o Carlos Godinho estaria a sentir. Chegava ao ponto mais alto e mais exultante da sua vida dedicada a Portugal. Senti que ele merecia mais aquela taça do que todos os portugueses que em redor do relvado explodiam de uma satisfação irresistível. O meu primeiro pensamento foi para ele. Uma pessoa única a viver um momento único. E o Carlos, que nunca foi exuberante, deve ter, como de costume, metido tudo para dentro incapaz de se elevar ao lugar que para si devia estar reservado. Sim, não o digo por amizade: o maior dos campeões foi ele!
O futebol é como a vida. Está cheio de injustiças (como foi injusta aquela derrota com a Grécia que dói ainda à bruta em nós todos que fazíamos parte daquela equipa inimitável) e de contradições, mas resta-nos sempre a oportunidade de fazermos a cada um a homenagem que tem direito. Eu faço aqui a minha. A um homem a quem dou o cognome de Senhor Selecção, com as maiúsculas bem expressas. Carlos Godinho decidiu que estava na hora de colocar um fim na sua carreira imponente e tantas vezes invisível. Mas eu sei aquilo que sacrificou para que Portugal passasse a pertencer ao grupo dos Grandes, e foi decisivamente por ele que lá chegou. Grande Carlos, fomos sempre amigos fortes sem precisarmos de manifestações exageradas. Faz parte dos nossos feitios escondermos emoções. E, apesar disso, é com uma emoção enorme que te escrevo este abraço intenso que te devo. Imagino que vás agora gozar a infância dos teus netos ainda a tempo de lhes dares todo o infinito carinho que tens pela tua esposa, pela tua filha e por eles. Vai e feliz. Cumpriste o teu Destino. O resto é silêncio…