A ketamina, amplamente conhecida no passado como uma droga recreativa associada a festas, tem vindo a destacar-se como um tratamento revolucionário para a depressão severa. Em doses controladas, o medicamento oferece alívio rápido e duradouro, salvando vidas de doentes com condições graves. Agora, um estudo da Universidade de Buffalo, em Nova Iorque, revelou detalhes inéditos sobre a forma como a substância age no cérebro para promover os seus efeitos antidepressivos.
Publicado na revista Molecular Psychiatry, o estudo descreve como a ketamina se conecta a recetores específicos no cérebro para gerar benefícios terapêuticos em questão de horas. Além disso, a investigação abre caminhos para explorar o uso de outros psicadélicos no tratamento de diferentes condições neurológicas.
De anestésico a salvador de vidas
Inicialmente desenvolvida nos anos 60 como anestésico, a ketamina ganhou notoriedade por causar efeitos alucinógenios e sensações de dissociação corporal em doses altas. Esse potencial para abuso levou à sua popularidade como droga recreativa. Porém, nos anos 2000, cientistas descobriram que doses baixas da substância poderiam aliviar rapidamente os sintomas de depressão severa e pensamentos suicidas — efeitos que os antidepressivos tradicionais demoravam semanas ou meses para alcançar.
Atualmente, clínicas especializadas utilizam a ketamina administrada por via intravenosa para tratar casos graves de depressão. Diferente de medicamentos convencionais, a ketamina oferece alívio quase imediato e pode manter os sintomas controlados por dias ou até semanas.
O mecanismo por trás da eficácia
O estudo liderado pela professora Gabriela K. Popescu e a sua equipa concentrou-se nos recetores NMDA, estruturas essenciais para a consciência e o funcionamento do cérebro. Foi observado que, em doses baixas, a ketamina interage com recetores ativos fora das sinapses, produzindo um efeito antidepressivo sem bloquear totalmente os sinais elétricos do cérebro.
Essa descoberta refuta teorias anteriores de que os efeitos da ketamina dependiam exclusivamente de um bloqueio direto nos recetores. “Descobrimos que, em baixas concentrações, a ketamina liga-se a locais específicos nas laterais do recetor, desacelerando a sua atividade sem interromper completamente os sinais. Isso aumenta a transmissão excitatória, o que alivia sintomas depressivos de forma quase imediata”, explicou Popescu.
Os investigadores criaram modelos tridimensionais dos recetores NMDA para identificar os locais exatos de ligação. Em doses altas, a ketamina aloja-se no poro central do recetor, interrompendo os sinais elétricos e causando os efeitos anestésicos. Já em doses menores, atua em dois pontos laterais, regulando a atividade de forma subtil e eficaz contra a depressão.
Implicações e próximos passos
A descoberta pode revolucionar o desenvolvimento de novos medicamentos, permitindo criar alternativas com os mesmos benefícios antidepressivos da ketamina, mas sem o risco de dependência associado à substância.
Além disso, a investigação sugere que variações na composição cerebral, como o pH e a estrutura das membranas celulares, podem explicar os motivos pelos quais os efeitos da ketamina variam entre doentes.
Segundo os investigadores, o próximo passo é testar novos compostos que possam replicar a ação da ketamina a nível molecular, oferecendo uma abordagem mais direcionada para tratar depressão e outros transtornos neurológicos.
Perspetiva científica
O estudo, financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), utilizou uma combinação de técnicas laboratoriais, incluindo modelagem molecular e medições elétricas em recetores isolados, para mapear os efeitos da ketamina em diferentes concentrações. Apesar dos avanços, os investigadores alertam que as experiências foram realizadas fora do ambiente cerebral humano, o que pode limitar a aplicação direta dos resultados.
Assim, este estudo não só oferece insights valiosos sobre a ação da ketamina como antidepressivo, mas também lança uma luz sobre os mecanismos de desenvolvimento da depressão no cérebro humano. Com isto, abre-se um novo horizonte para tratamentos mais seguros e personalizados.
O que se passa em Portugal?
Em território nacional, o uso de ketamina como tratamento para a depressão resistente (DRT) está a avançar, mas ainda se encontra em fases relativamente iniciais quando comparado a outros países. Uma das abordagens mais promissoras é o uso de ketamina em spray nasal, recentemente aprovado e estudado no país. Este medicamento tem mostrado eficácia em casos de DRT, alcançando taxas de remissão mais altas do que tratamentos convencionais, como a quetiapina, quando usado em combinação com antidepressivos tradicionais (ISRS ou IRSN). Por exemplo, 27,1% dos doentes tratados com ketamina alcançaram remissão em oito semanas, uma melhoria significativa face a alternativas tradicionais.
Adicionalmente, há esforços em instituições como a Fundação Champalimaud para explorar o impacto da ketamina a longo prazo, mostrando que pode ajudar a prevenir recaídas em depressão severa quando o tratamento é continuado por períodos prolongados. O protocolo usual envolve a administração em ambiente supervisionado, com integração num plano terapêutico mais amplo, incluindo suporte psicológico.
Por outro lado, há também iniciativas a nível experimental e clínico para tratamentos intravenosos de ketamina em Portugal, embora ainda em menor escala e muitas vezes em contexto de ensaios clínicos. Estes tratamentos são administrados sob supervisão médica, e as sessões incluem um acompanhamento psicológico posterior para ajudar os doentes a processar a experiência
O panorama português reflete um interesse crescente no potencial terapêutico da ketamina e de outros psicadélicos, mas ainda existem barreiras regulatórias e a necessidade de maior aceitação clínica e social para ampliar a sua disponibilidade.