Preocupação sem desespero

Uma administração Trump constitui um importante estímulo para que a União Europeia acorde e ganhe um novo rumo. Trata-se de um ‘virar da mesa’ por oposição ao eterno ‘baralhar e dar de novo’.

Teria votado em Kamala Harris, não obstante a achar sem capacidade para ser presidente dos EUA. Um seu eventual mandato seria uma apagada e vil tristeza e parte de mim, confesso, ficou satisfeita por ela ter perdido. Teria votado nela porque não gosto nada de Donald Trump. Desagrada-me a sua boçalidade (ou como João Carlos Espada gosta de dizer ‘o nunca abotoar o casaco’) e desagrada-me o tratar dos assuntos de estado como se fossem os de um negócio de família do qual é o patriarca, absoluto e caprichoso, insensível a conflitos de interesse e aos meios para atingir os fins, e desinteressado das normas e costumes democráticos.
Isto dito, parecem-me patéticas as manifestações de desespero que todos os dias testemunhamos. Já não falo do triste exemplo dos professores de Harvard que cancelaram aulas por ‘respeito’ para com os seus estudantes que sofreriam de depressão pós-Trump. Falo, sobretudo, dos jornalistas, analista e comentadores que enxameiam os jornais do mainstream e os canais por cabo, e que passam horas sem fim escrutinando cada uma das declarações, escolhas e gestos de Trump, com um espírito sombrio e prognósticos apocalípticos. Tudo isto, – tomando como referência o exemplo dos media nacionais -, sem qualquer contraditório ou, sequer, moderação. Alguns até proclamam a denúncia de Trump como uma bandeira do jornalismo “neutro” e independente. (Foi por estas e por outras que os legacy media perderam credibilidade e Trump ganhou).
Sejamos razoáveis e mantenhamos a cabeça fria. Sem dúvida que uma administração Trump terá políticas nocivas e que me deixam preocupado. Sem dúvida que o sistema de pesos e contrapesos da democracia americana terá uma prova exigente, (mas que, estou convencido, conseguirá ultrapassar). Outras políticas existem, contudo, que encaro com curiosidade e, porque não dizê-lo, com esperança.
Um aspeto que me preocupa muito é o manifesto ceticismo relativamente à ciência e às suas conquistas em áreas como a saúde pública e o clima, e que pode conduzir a retrocessos importantes em matéria de vacinação ou transição verde. Em comum com a esquerda das ‘epistemologias do Sul’, muitos à volta de Trump encaram a ciência como uma narrativa, um constructo social. Apenas o móbil difere: para eles é uma conspiração destinada a enfraquecer o capitalismo e coartar as liberdades individuais; para estes, uma conspiração capitalista para oprimir as diferentes tribos da sua mundivisão.
Quanto ao resto, acho tudo bastante natural (ainda que as minhas preferências pudessem diferir). ‘America First”’- quem seria o presidente que não colocaria a América primeiro? Quem deveria colocar primeiro: A Europa? A ONU? ‘Privilegiar a lealdade pessoal e política à competência técnica nas nomeações ministeriais’ – mas em que governo não é assim (sobretudo depois de uma experiência com sabotadores internos num primeiro mandato)? Não são os ministros cargos políticos mais do que técnicos? E vamos ver quantos dos nomeados mais polémicos passarão o crivo do Senado. ‘Expulsão de 11 milhões de imigrantes ilegais’ – a imigração ilegal é percebida pela maioria dos americanos como um problema (mesmo um crime) sério; mas aguardemos para ver, pois o custo da medida já foi estimado num valor que excede largamente o PIB português. E em que país, governado mais à direita ou mais à esquerda, não se assiste a um endurecimento face à imigração ilegal?
Finalmente os motivos de curiosidade e, até, de esperança. Para quem que, como eu, deseja uma esquerda liberal forte e centrada na resolução dos problemas reais da maior parte das pessoas e não em problemas inventados por uma minoria, a derrota do “politicamente correto” e do seu insuportável cancelamento da livre expressão, (pelo qual Harris tinha mal disfarçada simpatia), abre a esperança de que o progressismo liberal se liberte dessa canga. Parafraseando Bernie Sanders, para que se volte, de novo, para os trabalhadores.
Tenho também muita curiosidade em avaliar a influência de Elon Musk nas políticas da Administração Trump. Ele não é um oligarca tradicional – daqueles de cartola e charuto -, mas antes o expoente de uma geração de demiurgos de um mundo novo (que, veremos, se utópico ou distópico). Até onde conseguirá desmantelar o ‘big-tech’? Quão profunda será a desregulação da economia? E quanto aos perigos de vir a demolir o estado americano, convém não esquecer qualquer ação do presidente só tem efeito ao nível federal, que tem uma dimensão reduzida face aos níveis estaduais e locais (por exemplo, são cerca de 3 milhões os funcionários civis federais, contra quase 20 milhões daqueles empregados pelos estados e condados).
A política de Biden (que seria também a de Harris) relativamente à Ucrânia – apoio com cinto e suspensórios – ameaça conduzir a uma eternização do conflito à custa de milhares de vidas ucranianas. Com Trump a situação será mais clara, um “sim ou sopas, pois ele, (legitimamente face a uma avaliação dos riscos estratégicos para o seu país), quer retirar o enfoque militar americano da Europa. Não obstante, não creio que deseje uma capitulação pura e simples da Ucrânia, que seria sempre vista como uma derrota da América. Negociará a paz, mas numa posição de força. (Aliás, a recente permissão para a Ucrânia usar mísseis de longo alcance fortalece a mão negocial de Trump, até parecendo ter sido com ele concertada.)
Mais próximo de nós, uma administração Trump constitui um importante estímulo para que a União Europeia acorde e ganhe um novo rumo. Trata-se de um ‘virar da mesa’ por oposição ao eterno ‘baralhar e dar de novo’. Se não resultar não sei o que resultará. A criação de uma capacidade de defesa forte e autónoma é a prioridade das prioridades. E é urgente: seria bom que o habitual gradualismo europeu não a empurrasse para daqui a muitos anos, a tempo, somente, de uma próxima futura ameaça. A recente decisão de desviar dezenas de milhares de milhões de euros do orçamento da coesão para o da defesa e segurança é um bom sinal, mas ainda muito tímido e com efeitos muito longínquos. É preciso muito mais: armas, homens e comando unificado. Uma coligação das nações com boa-vontade, num verdadeiro exército europeu na NATO. Só nesta posição de força será possível negociar com a Rússia um novo quadro de segurança na Europa. E também aqui, acredito, Trump abre boas perspetivas.
Conclusão: Calma! Não esqueçamos que Donald Trump já governou quatro anos e o mundo não acabou.

Professor universitário