Olho para Washington e recordo o cenário e os personagens dessa obra-prima que é o Batman Returns de Tim Burton. E vejo os personagens adaptar-se à realidade da trama do que hoje se está por lá a passar. Vejo a capital do império americano transfigurar-se na crepuscular Gotham City que Tim Burton criou, recortada de um pesadelo e onde o Pinguim tenta, a todo o transe, retomar o poder há dias formalmente perdido; onde Scarface, Joker e Duas Caras são máscaras coloridas sobre as faces de vilões cinzentos que se recusam a perder o espólio trilionário de 80 anos de roubos, corrupção e tráfico de tudo. No último andar do mais alto e arranha-céus da cidade das trevas os generais desse exército de sombras, a Mulher-Gato e o Chapeleiro Louco, sorrindo com desprezo, vão puxando os cordéis de Pinguim, a marionete. Conseguirão eles, usando o tempo de poder que lhes resta, manter e reforçar o seu poder sobre Gotham e evitar, no limite, o regresso de Batman?
Sim – voltemos à realidade – lá longe, alguém teleguia os passos, os gestos e as decisões daquela assombração que imaginamos a percorrer, silenciosamente, noite fora, sem descanso, perdido no seu próprio labirinto, os longos corredores da Casa Branca. Sim, o mesmo ‘Sleepy Joe’ que os oligarcas do partido Democrata escorraçaram pela porta da cozinha, a tropeçar na gamela dos cães, por incapacidade manifesta para ser o ‘seu’ candidato à Casa Branca. Sim, esse mesmo que, ausente de si mesmo, aperta a mão ao ar que o rodeia, termina conferências de imprensa desaparecendo entre as árvores da Amazónia e sai sempre pelo lado errado dos palcos. Sim, ele todo, essa sombra de uma sombra mantém, incólume, a sua capacidade legal para conduzir a mais poderosa nação da Terra.
Mas o mais estranho de toda esta história sem qualquer sentido é que não se vê nenhum jornalista, comentador ou pequeno e médio intelectual, perguntar como uma situação destas é possível e, a ser possível, como pode ela ser aceitável. Vejo-os a todos preocupados com Trump e com as nomeações de Trump para a sua Administração. Vejo-os e ouço-os a escanhoar, até ao infinito, cada um dos escolhidos e preocupados porque são loiros, ou morenos, ou porque bebem água em vez de vinho ou vinho em vez de água. A chorar, a choramingar, a uivar, a rasgar as vestes. A cancelar, a caluniar, a tripudiar, a mistificar porque o que importa é que não sobre nada de são em todos e em cada um dos escolhidos. Importante mesmo é que não sobre nada de nenhum deles. E há bombos da festa para todos os gostos. Os covideiros, os poucos que ainda restam, desancam em Kennedy, por ‘negacionismo’; os wokes horrorizam-se com Pete Hegseth, «branco, cristão e patriarcal» e por aí fora. Pois. Mas que ao leme do transatlântico ‘América’ se encontre um morto – vivo, isso já nada importa. A mensagem é clara e assustadora: ‘É o Titanic, mas que importa? Naufraguemos todos desde que, connosco, naufraguem também Trump, Kennedy, Hegset i tutti quanti’. Estamos em pleno reino do rei Ubu, no reino da Patafísica, ou seja, em pleno absurdo.
Alfred Jarry, precursor do teatro do absurdo, criador (1896) de um personagem grotesco, o Rei Ubu, foi também o criador da ‘Patafísica’ ‘a ciência das soluções imaginárias’ que ‘opera a desconstrução do real e a sua reconstrução no absurdo’. A Patafísica tem um nome moderno: wokismo.
Vice-presidente da Assembleia da República