O Matuto está gordo. É um facto. Todavia, o Matuto entende que toda a verdade é curva. Como tal, nas andanças metafísicas o Matuto leva vantagem sobre os demais terráqueos. Além disso, o Matuto sente que está em boa companhia. Winston Churchill – grande estadista; Orson Welles – homem que transformou o cinema; BB King – o Rei dos blues; Chesterton – grande apologista da Fé Cristã; Tomás de Aquino – teólogo, a quem chamavam “touro” por causa do seu volume corporal; Monserrat Caballé e Pavarotti – cantores consagrados de ópera. E, o Matuto poderia desfiar a lista imensa.
Mas nem sempre foi assim. Nos seus dias de Primavera, o Matuto ia regularmente ao Centro de Saúde para tirar a radiografia obrigatória a entregar no emprego. O Matuto era magro. Tipo, esqueleto ambulante. O técnico de serviço à maquineta, tinha sempre a piada na ponta da língua: “radiografia para quê? No seu caso basta uma fotografia”! “Engraçadinho, ainda lhe cai o dentinho” – ruminava o Matuto.
Naturalmente que o Matuto sente o policiamento social da sociedade em relação aos quilos. O tempo da “gordura é formosura” já lá vai. Agora é mais “fofinho é chatinho’. Agora, o gordo está para o mórbido, como o homem branco está para tóxico. E, a frase, “engordaste, outra vez” é demolidora, para qualquer pessoa anafada. Aquele “outra vez” carrega toda uma carga de dietas abandonadas, caminhadas apenas planeadas, calorias vigiadas, jantaradas canceladas, sugestões para perder peso ignoradas… Enfim! Uma luta titânica com a balança – essa medidora de banha. Sendo que a balança sempre leva a melhor – rosna o Matuto.
Ao fim ao cabo a perspectiva que se tem dos gordos é cultural. Lá está: a verdade é curva! O Matuto lembra-se perfeitamente de ter dado de caras (ainda bem que não foi de corpo!) com uma senhora imensa, num centro comercial no Canadá. Naquelas latitudes puritanas a presença nutritiva da senhora apenas suscitou cálculos mentais sobre a quantidade de “hamburgers”, de “cookies” e de “apple pies” que consumiria tão ampla figura. Já em Portugal certamente que a sólida presença pararia o trânsito; carros iriam derrapar nas rotundas; saltariam das janelas e das praças piropos do tipo: “ganda baleia”, “que repolho”, “se chegas à janela precisamos ligar a luz”, “que tubarão”, “essa não faz sombra, já tem nuvem privada”, “isso é um colete salva-vidas que tens à cintura!”, “ó filha! Posso pôr a mão na massa?”, etc.
O Matuto teve reticências em entrar no “clube dos gordos”. Foi por fases. Houve a fase da iniciação. As roupas preferidas foram abandonadas conforme o progresso generoso do tecido adiposo. O Matuto tomou consciência aguda da publicidade anti-gordos. Emagrecer era obrigatório. Engordar só se fosse frango de aviário. Esse, quer-se bem cheinho de carnes. O Matuto deu-se conta de como um gordo incomoda muita gente… Ninguém se incomoda com trinca-espinhas, com os espirra-canivetes da nossa urbe, com os carga de ossos que chocalham pela rua, magricelas que quando se escondem atrás dum poste ainda sobra espaço. Depois o Matuto entrou na fase da rejeição – o choque corporal. Os gordos são obrigados a aturar o massacre agressivo dos anti-gordos. Sim, há criaturas activistas nesta causa. Pior, só mesmo as chamadas do telemarketing. Este tipo de pessoa vive sugerindo uma dieta milagrosa, uma micro-dieta, uma dieta intermitente… Parecem que querem o bem do Matuto: “olha, no outro dia li um artigo sobre os efeitos maravilhosos desta dieta à base de…” Claro que o Matuto, por esta altura, só pensa no próximo donut. O Matuto admite que esta gentalha até é sincera com as suas massagens, e tratamentos a raios laser, e sabonetes de tripla acção, e pílulas de limão, chás virgens e chineses e tailandeses e finlandeses e malteses, aparelhos relax, cintas térmicas, cremes adelgaçantes, aparelhos de musculação, rotinas de queima de calorias, e injecções de ozempic. Ufffa! Que cansaço! Rapidamente o Matuto instalou-se de armas e bagagens na fase da aceitação. A verdade sendo curva afirma alto e bom som que o Matuto gosta de um dos mais legítimos e completos prazeres da vida: o de comer e beber como Gargantua e Pantagruel. E não será por acaso que os gordos são gente comunicativa, solidária, bem-disposta e afável. O mundo seria um lugar bem mais hostil sem o Matuto gordo.
Entretanto, no Outono da vida, o Matuto, na companhia da sua gentil esposa, Dona Sirlei, preparava-se para entrar no Harmonie Sucré, para degustar o esplêndido bolo de baunilha regado com calda à la custard. Lépido um pedinte chega exigindo “10 reais”. O Matuto justifica: “cara, todo o mundo usa cartão agora. Não tenho dinheiro vivo!”. O pedinte desconfiado foi-se afastando às arrecuas, com andar de caranguejo, olhando o Matuto pelo rabo de olho. E solta o insulto: “BARRIGUDO”! O Matuto ficou assarapantado. Depois deu uma gargalhada (meio seca!). Definitivamente, agora, fazia parte do “clube dos gordos”.