Ao unir as trajetórias de Joan Didion e Eve Babitz no seu mais recente livro, a autora e jornalista Lili Anolik apresenta uma narrativa rica e envolvente que explora a relação entre duas das figuras literárias mais emblemáticas da cultura californiana do século XX. Inicialmente concebido como uma revisão do trabalho anterior sobre Babitz, o projeto acabou por evoluir para um retrato paralelo e interdependente destas duas mulheres, cujas vidas e obras se entrelaçaram de forma fascinante.
A ideia para o livro surgiu num encontro inesperado com os pertences de Eve Babitz, após a sua morte. «Já havia escrito sobre a Eve em 2019 e tinha seguido em frente. Mas, ao participar no memorial dela em Los Angeles, a sua irmã pediu-me para ver algumas caixas que haviam sido encontradas no apartamento de Eve», conta Anolik. Nessas caixas, descobriu uma verdadeira mina de ouro literária: cartas, manuscritos, diários e obras de arte. Entre esses achados, destacou-se uma carta de Babitz para Didion, datada de 1972.
«Parecia mais uma explosão emocional, quase uma briga de amantes. Sempre soube que elas partilhavam círculos sociais nos anos 60 e 70, mas pensei que fosse uma relação casual. Essa carta revelou algo muito mais profundo», revela. A descoberta levou a autora a fazer um hiato num projeto em andamento para mergulhar na relação entre as duas mulheres, percebendo que «para contar a história de uma, era preciso contar a história da outra».
Mas, para entendermos Didion & Babitz temos, primeiro, de conhecer a vida e obra de cada uma destas escritoras. Joan Didion foi uma das maiores escritoras americanas do século XX, conhecida pelas suas crónicas incisivas sobre a cultura e a política dos Estados Unidos. Nascida a 5 de dezembro de 1934 em Sacramento, Califórnia, Didion, desde jovem, interessou-se por literatura e formou-se em Inglês pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Começou a sua carreira como editora na Vogue antes de publicar os seus primeiros ensaios e romances.
O seu estilo claro e perspicaz destacou-se em obras como Slouching Towards Bethlehem (1968) — em que capturou o espírito desordenado dos anos 1960, especialmente o caos cultural da Califórnia — e The White Album (1979) — que consolidou a sua reputação como cronista do desespero e da alienação da época, com reflexões pessoais misturadas com eventos culturais e políticos. Além dos ensaios, escreveu romances como Play It As It Lays (1970) e guiões para Hollywood. Por exemplo, A Star is Born (1976) e True Confessions (1981), em parceria com o seu marido, o escritor John Gregory Dunne. A sua vida pessoal e profissional eram entrelaçadas, algo que viria a explorar com profundidade nas suas obras tardias. Os seus livros de memórias, The Year of Magical Thinking (2005) — que venceu o National Book Award — e Blue Nights (2011), trataram temas como o luto e a mortalidade, solidificando o seu legado como uma cronista sensível e visionária da condição humana.
Eve Babitz, que nasceu quase 10 anos depois, a 13 de maio de 1943, foi uma escritora e artista visual americana cuja obra celebra o hedonismo e a cultura vibrante de Los Angeles. Nascida em Hollywood, Babitz era filha de um violinista da Orquestra Sinfónica de Los Angeles e afilhada do compositor Igor Stravinsky. O seu trabalho começou como designer de capas de discos antes de se tornar conhecida pelas suas memórias e ficções semi-autobiográficas, como Eve’s Hollywood (1974) — era uma celebração irreverente de Los Angeles e da sua vida boémia, combinando observações perspicazes com anedotas espirituosas — e Slow Days, Fast Company (1977) — através do qual aprofundou essa exploração, capturando a essência fugaz e luminosa do sul da Califórnia.
Babitz era uma figura central no cenário artístico e literário de LA, conhecida pelo seu charme irreverente, inteligência afiada e um estilo de vida que refletia a essência da Califórnia. Também era famosa pelo seu estilo de vida libertário e a sua presença magnética no cenário artístico da época. Circulava entre estrelas como Jim Morrison, Harrison Ford e Andy Warhol, ao mesmo tempo que mantinha uma perspectiva crítica e humorística sobre a cultura que a rodeava. A sua redescoberta no século XXI revitalizou a sua reputação como uma das vozes mais únicas e carismáticas da literatura americana.
A «esfinge» e a «sedutora»: contrastes e semelhanças
Na construção da narrativa, a autora optou por utilizar dois arquétipos que resumem as personalidades de Didion e Babitz: a esfinge e a sedutora. Joan Didion, com a sua figura pequena, óculos escuros e silêncios calculados, assumia a imagem de uma esfinge enigmática. «Ela era naturalmente tímida, mas aprendeu a usar isso a seu favor. Tornou-se alguém que falava pouco e usava a sua presença como ferramenta», explica a autora. Já Eve Babitz, com a sua exuberância física e histórias provocantes, abraçava a identidade de uma sedutora. «A primeira coisa que Eve me disse sobre si mesma foi que era uma groupie, não uma artista ou escritora. A sua imagem pública começou com aquela icónica foto dela a jogar xadrez nua com Marcel Duchamp», relembra.
Mas a autora aponta que esses papéis não eram fixos. «Joan podia ser incrivelmente sedutora na sua maneira silenciosa e misteriosa, enquanto Eve, que parecia tão aberta, era incrivelmente reservada sobre aspectos da sua vida». Essa dualidade reforça a ideia central do livro: apesar das suas diferenças, Babitz e Didion eram, em muitos aspectos, reflexos uma da outra, vivendo e escrevendo dentro de um mesmo universo cultural.
A narrativa também se aprofunda na relação da autora com Los Angeles, cenário central para as histórias de Babitz e Didion. Apesar de atualmente viver em Nova Iorque, a autora cresceu fascinada pela cultura californiana. «Los Angeles era um sonho para mim, um lugar que eu idealizava ao ler Pauline Kael e a ver os filmes da nova Hollywood dos anos 70. Quando comecei a escrever sobre Eve e Joan, senti que finalmente havia conseguido aceder a essa cidade mítica».
Essa imersão na história de Los Angeles também revelou tensões entre o presente e o passado da cidade. Enquanto Babitz e Didion viviam e escreviam no meio do glamour e da decadência de Hollywood, cada uma à sua maneira capturava as complexidades culturais de uma cidade em constante transformação. O processo de pesquisa e escrita transformou não apenas o entendimento da autora sobre Babitz e Didion, mas também a sua própria abordagem à escrita. Inicialmente, Babitz era a sua paixão: «Li Slow Days, Fast Company pela primeira vez em 2010, quando ninguém parecia lembrar-se dela. Para mim, ela era a génia secreta de Los Angeles». Já Didion era uma figura que ela respeitava, mas não admirava imediatamente.
«Sabia que ela era brilhante, mas o seu estilo não me atraía tanto. Tudo mudou quando conheci Noel Parmentel, uma figura-chave na sua juventude. Ele mostrou-me Joan antes de se tornar a Joan Didion que conhecemos – uma jovem tímida e inexperiente que teve que aprender a apresentar-se ao mundo», explica. A autora confessa que mergulhar nas histórias de Didion e Babitz também afetou a sua própria voz literária. «Não se consegue evitar ser influenciada por elas. O estilo conciso e controlado de Didion, a exuberância e irreverência de Babitz – tudo isso acaba por deixar marcas em quem escreve sobre elas».
Duas vidas, uma Califórnia literária: o legado de Joan Didion e Eve Babitz
Durante mais de uma década, Anolik dedicou-se a mergulhar na vida e obra de Joan Didion e Eve Babitz. No seu novo livro, explora as histórias de duas mulheres que moldaram a narrativa literária da Califórnia e o impacto cultural do estado. Combinando pesquisa minuciosa, entrevistas e reflexões pessoais, o livro revela não apenas as conexões entre essas figuras icónicas, mas também o que as torna únicas nos seus legados e métodos criativos.
Ao longo de 14 anos, a autora descreve como o projeto a «sequestrou». «Eu tenho uma família, um marido, filhos, mas, de certa forma, essas duas mulheres e este livro ocupam o meu pensamento o tempo todo», revela.
Mais do que um trabalho profissional, foi uma busca profundamente pessoal. «Como deve ser uma mulher artista? Como deve ser uma mulher escritora? Para mim, são questões existenciais». Essa busca começou aos 32 anos, quando Anolik iniciou a sua relação com as obras de Babitz. Agora, aos 46, reflete: «Elas fazem parte de mim. Este livro é parte de mim».
Um ponto que a autora destaca é como escritores como Didion e Babitz não apenas criaram obras marcantes, mas também cultivaram um estilo e uma persona que cativaram o público. «Para se ser um escritor duradouro, o trabalho tem de ser ótimo. Mas parece que a persona também precisa de seduzir. A vida, aparência e estilo devem alinhar-se com as próprias personagens. É como Fitzgerald, Hemingway e Didion fizeram», explica.
Babitz, por exemplo, é retratada como uma escritora que abraçou as contradições e excessos da sua era. A sua personalidade e o seu legado expandiram-se ao longo das décadas, como exemplificado por referências culturais modernas. «Babitz aparece em programas de TV como Gossip Girl. Isso mostra como a sua persona influenciou gerações, mesmo anos após os seus principais trabalhos», observa a autora.
A pesquisa para o livro revelou aspectos fascinantes sobre ambas as figuras. No caso de Didion, a autora admira a sua astúcia ao construir uma carreira que atravessou décadas. «Joan era extremamente perspicaz em manter a sua relevância. Mesmo que eu rejeite esteticamente O Ano do Pensamento Mágico e Noites Azuis, estes livros catapultaram-na para o status de lenda», afirma. Anolik descreve como Didion transformou tragédias pessoais — como a perda do marido John Gregory Dunne e da filha, Quintana Roo Dunne — em literatura que alcançou grande sucesso comercial e crítico. «Ela sabia que o seu trabalho importante tinha ficado para trás, mas manobrou de forma brilhante para reverter isso e entrar para o imaginário coletivo».
Já Babitz, por outro lado, é retratada como uma figura mais visceral e autêntica. Cartas não enviadas, guardadas por Babitz como se fossem um diário, revelam um lado nu e cru da autora. «Essas cartas são incríveis porque mostram algo que nem mesmo os seus amantes ou familiares próximos sabiam», avança. «É como se ela dissesse: ‘Isto é muito importante para confiar ao destinatário’. Acho que revela uma privacidade fascinante».
Conexões e impacto cultural
Escrever sobre duas figuras com abordagens tão distintas à publicidade e ao legado trouxe desafios inesperados. Didion era reservada e cautelosa, enquanto Babitz era mais transparente nas suas cartas privadas, mas igualmente enigmática. A descoberta de Noelle Parmentel, o grande amor de Didion, foi um divisor de águas. «Ele viu que Joan estava a ter um colapso nervoso e escolheu um marido para ela», revela a autora, descrevendo a complexidade emocional da vida de Didion. Por outro lado, foi em conversas com amigos e amantes de Babitz que emergiram novas camadas da sua personalidade. A autora conta como entrevistas com Dan Wakefield, ex-namorado de Babitz, trouxeram à tona memórias há muito enterradas. «Ler cartas e diários de Eve a essas pessoas era como um choque de memória. Elas desbloqueavam detalhes esquecidos», diz.
O que une Babitz e Didion, apesar dos seus estilos e trajetórias distintas, é a dedicação inabalável à arte. «Elas eram artistas antes de serem mães, esposas, amigas. Esse era o nível de comprometimento. Didion e Babitz queriam ser grandes escritoras e pagaram um preço alto por isso», reflete a autora, destacando a coragem de ambas em seguir o caminho artístico sem se desviarem. «O preço foi alto, mas elas pagaram-no sem reclamar. Isso inspira-me».
Uma das maiores contribuições do livro é mostrar como as vidas e obras dessas duas mulheres estão interligadas com a história cultural da Califórnia. De Los Angeles a Nova Iorque, as suas trajetórias ilustram como as experiências individuais têm impacto num cenário mais amplo. «Entender Joan é entender a literatura californiana. Entender Eve é entender Los Angeles», argumenta Anolik. «Ambas capturaram o espírito da sua época de formas únicas».
Curiosamente, até os finais de vida de Didion e Babitz acabaram por se cruzar de certa forma. Nos anos finais da sua vida, Didion viveu reclusa no seu apartamento em Nova Iorque, enfrentando problemas de saúde que a limitaram. Ela sofria de complicações causadas pela Doença de Parkinson, diagnosticada anos antes, e de uma fragilidade geral associada à idade avançada. Apesar disso, continuou a ser celebrada como uma das vozes mais icónicas da literatura americana, com trabalhos dedicados à sua carreira, como Joan Didion: The Center Will Not Hold, o documentário lançado na Netflix em 2017, dirigido pelo seu sobrinho, Griffin Dunne. Didion morreu a 23 de dezembro de 2021, aos 87 anos, devido a complicações da Doença de Parkinson. A sua morte marcou o fim de uma era para a literatura americana.
Já Babitz, que havia passado décadas a encapsular o brilho e as contradições de Los Angeles, desapareceu durante boa parte dos anos 1990 e início dos 2000. Após sofrer queimaduras graves num incêndio em 1997 – quando acidentalmente deixou cair um fósforo aceso na sua saia enquanto conduzia – Babitz passou anos em recuperação, um processo que a forçou a afastar-se da sua escrita e do estilo de vida ativo pelo qual era conhecida. Durante esse período, Babitz tornou-se uma figura reclusa, vivendo uma vida tranquila em Hollywood e evitando a atenção pública que havia abraçado anteriormente. Os seus dias eram dedicados à leitura e a receber visitas de amigos próximos, que a descreveram como espirituosa e cheia de histórias, apesar do seu isolamento. Em 2010, Babitz foi diagnosticada com Doença de Huntington, uma condição genética neurodegenerativa que afetaria a sua cognição, memória e habilidades motoras nos anos seguintes. Essa doença, que também havia acometido outros membros da sua família, limitou ainda mais as suas vidas pública e criativa. Morreu a 17 de dezembro de 2021, aos 78 anos, em Los Angeles. A sua morte marcou o fim de uma vida extraordinária, repleta de arte, amor e excessos, mas também deixou para trás um legado literário que continua a inspirar leitores e escritores a explorar o espírito libertário e contraditório de Los Angeles.
Ambas as autoras, Didion e Babitz, partiram no mesmo ano, mas deixaram um impacto duradouro que transcende as suas vidas. Os seus trabalhos continuam a dialogar com leitores, oferecendo insights sobre o que significa viver, criar e observar o mundo em nosso redor. Por todos estes motivos, o livro de Anolik não é apenas uma biografia dupla, mas uma meditação sobre criatividade, identidade e a persistência do espírito artístico. A autora espera que os leitores se sintam inspirados pela paixão e coragem de Didion e Babitz. «Elas foram até ao fim. Isso é o que espero que as pessoas vejam — que ser artista é um compromisso radical e elas estavam dispostas a assumi-lo». Com um texto visceral e profundamente humano, o livro reafirma o impacto duradouro dessas duas figuras que, cada uma à sua maneira, capturaram a essência da Califórnia e do seu tempo.