Kianoosh Sanjari. O ativista suicidado pelo regime iraniano

1982-2024 Ativista devolveu aos aiatolás o cadáver que estes produziram.

Preso por diversas vezes, muitas delas internado à força em instituições psiquiátricas, Kianoosh Sanjari foi um dos rostos da repressão degradante e criminosa que caracteriza o regime iraniano, tendo levado o ativista dos direitos humanos a um tal grau de desespero, que este escolheu pôr fim à vida num último gesto de denúncia «contra ditadura de Khamenei».

A primeira vez que foi arrancado das ruas e atirado numa cela Sanjari era ainda adolescente, protestava então contra a repressão dos estudantes ativistas. Ao longo das duas décadas seguintes, e uma vez que ele não dava sinal de renunciar às suas aspirações de liberdade nem de se deixar intimidar, o regime tentou por todos os meios semear nele não apenas um sentimento de impotência, mas, e pior ainda, uma crise profunda de confiança no seu juízo sobre a realidade. «A República Islâmica arruinou aqueles que teriam sido os dias da minha juventude, tal como fez a milhões de outras pessoas», disse certa vez. «Dias que poderiam ter sido preenchidos pela paixão, felicidade e doçura foram passados na prisão, o que provocou danos irreversíveis ao meu corpo e à minha alma».

Na manhã de quarta-feira, ele publicou na rede social X, a seguinte mensagem: «Se até às 19 horas de hoje, quarta-feira, 13 de novembro de 2024, [os presos políticos] Fatemeh Sepehri, Nasreen Shakrami, Toomaj Salehi e Arsham Rezaei não forem libertados da prisão…, irei por fim à minha vida em protesto contra a ditadura do [Líder Supremo] Khamenei e dos seus parceiros. Que isto seja um sinal de alarme! Viva o Irão». Horas depois, Sanjari voltou a fazer novas publicações que indicavam que estava no topo de um centro comercial em Teerão, e de seguida lançou-se. Tinha 42 anos.

A notícia da sua morte provocou o efeito pretendido, e gerou de imediato um intenso debate, com muitos iranianos a apontarem o dedo ao regime depois de Sanjari, nos anos que viveu no país, não ter conhecido outra coisa senão a perseguição e os traumas que este lhe infligiu, e que o terão conduzido a um ato que espelha toda essa brutalidade. Outros focaram o facto de este suicídio se ter desenrolado à vista de todos, e em tempo real, uma vez que Sanjari foi dando conta dos seus últimos passos e momentos de vida, numa série de publicações cada vez mais alarmantes nos dois dias que antecederam a sua morte. Sendo certo que o regime iraniano não deixa de passar a pente fino as redes sociais, desencadeando muitas das suas ações repressivas em resposta àqueles que se mostram críticos das autoridades Assim, alguns jornalistas questionaram porque é que o regime não foi tão expedito na hora de impedir o suicídio.

Enquanto subiam de tom os protestos e denúncias da atuação do governo, desta vez a reflexão deteve-se em temas e assuntos que raramente são discutidos abertamente no país, sejam os efeitos do trauma a longo prazo nos prisioneiros políticos, seja o sofrimento mental dos ativistas que, muitas vezes se sentem isolados, e incapazes de pedir ajuda

Na teia do regime
Sanjaria tinha 17 anos quando pela primeira vez se viu enredado na teia sufocante do regime, à altura tinha iniciado um blogue onde partilhava a sua frustração com as formas como o aparelho estatal cerceava as liberdades no país, tendo participado também em protestos de rua. Foi preso e colocado em solitária, e até 2007, esteve sempre sujeito a apertada vigilância e qualquer ato seu que desagradasse as autoridades era motivo para o encarcerarem. Naquele ano, após ter cumprido uma pena de dois anos por «ameaçar a segurança nacional», foi libertado e escapou do país. Passou uns tempos na Noruega até lhe ser concedido asilo político nos EUA, onde continuou a denunciar a repressão do regime dos aiatolás, envolvendo-se com organizações dos direitos humanos, e trabalhando como jornalista na rádio e agência de notícias Voice of America (VOA) Persian, entre 2009 e 2013.

Como assinala o obituário do The New York Times, entre as organizações para as quais Sanjari trabalhou conta-se o Centro Abdorrahman Boroumand, com sede em Washington, que documenta as violações dos direitos humanos no Irão. O seu diretor executivo, Roya Boroumand, homenageou-o assinalando a forma como, com grande risco pessoal e apesar do sofrimento a que foi submetido, «permaneceu ativo, lutando pelos direitos de outros prisioneiros e contra a pena de morte».

Hora de regressar
Apesar da rede de apoio que encontrou no exílio, aqueles anos não foram fáceis, e o Times cita dois amigos de Sanjari que descrevem o período de penúria que ele sofreu nos EUA, passando por episódios de depressão que dificultaram a sua capacidade de manter um emprego estável. Em 2016, e depois de a sua mãe ter adoecido, ele decidiu que estava na hora de regressar. Supôs que tivesse passado tempo suficiente para o regime se esquecer dele, e que poderia encontrar alguma paz e ter condições de cuidar da mãe. Pouco tempo depois de voltar ao país, foi novamente preso e o Tribunal da Revolução, que julga os casos políticos, condenou-o a 11 anos de prisão após um julgamento sumário. Cumpriu cinco anos e, durante este período, as autoridades prisionais transferiram-no para instalações psiquiátricas do governo pelo menos seis vezes.

Ele viria a deixar claro que este foi o «período mais negro» da sua vida. «Acorrentaram-me à cama, injetaram-me uma coisa que me bloqueou o maxilar e perdi a capacidade de falar durante cerca de 20 horas, e mesmo depois só podia fazê-lo com grande dificuldade», disse Sanjari num relato áudio da sua experiência na aplicação Clubhouse. Contou também como era obrigado a tomar um cocktail de comprimidos três vezes por dia e foi submetido por nove vezes a sessões de choques elétricos. «Cheguei ao ponto de esquecer quem era, o que estava lá a fazer, quando fui levado para lá, há quanto tempo lá estava. Perguntava ao guarda: ‘Como é que me chamo?’».

Em 2022 e já este ano, Sanjari regressaria aos EUA, mas não demorava a sentir-se abatido e desenraizado. Um dia antes de se suicidar, segundo a VOA, terá visitado a casa dos pais e esteve com alguns amigos que acreditavam ter sido capazes de o dissuadir de fazer um ultimato ao regime iraniano. Ainda publicou uma última imagem da perfectiva que tinha no topo do centro comercial de onde se precipitou para a morte. Pouco depois, circulava nas redes sociais o vídeo de um corpo embrulhado num pano branco na berma da estrada, enquanto chovia. No meio das luzes intermitentes das ambulâncias, das equipas de emergência e dos transeuntes, consegue ouvir-se alguém perguntar quem era.