Durante uma reunião com deputados franceses no Vaticano, o Papa Francisco reafirmou a sua posição em defesa do “fim natural da vida” e sublinhou a importância dos cuidados paliativos como alternativa à eutanásia. A reunião, que ocorreu na Sala do Consistório, deu-se num momento em que o debate sobre o fim da vida volta ao centro das discussões políticas em França.
“Espero que, também com a vossa contribuição, o debate sobre a questão essencial do fim da vida possa ser orientado para a verdade”, afirmou o Papa aos parlamentares do sul de França, citado pela agência Efe.
O pontífice argentino reforçou que é necessário “acompanhar a vida até ao seu fim natural através do desenvolvimento alargado dos cuidados paliativos”, mesmo quando não há possibilidade de cura.
A eutanásia tem sido tema de intenso debate na política francesa. Um projeto de lei que permitiria a prática foi apresentado em maio, mas o processo legislativo foi interrompido após a dissolução do parlamento por Emmanuel Macron, na sequência de um revés eleitoral. Espera-se, contudo, que a questão retorne à agenda política em breve.
“As pessoas no fim da vida precisam de ser apoiadas por assistentes fiéis à sua vocação, que é a de prestar assistência e alívio, mesmo que nem sempre possam ser curadas”, defendeu Francisco, elogiando o interesse dos deputados pela visão da Igreja.
Contexto internacional e posições anteriores
A postura do Papa contra a eutanásia tem sido consistente. Em maio deste ano, numa mensagem ao primeiro simpósio inter-religioso sobre cuidados paliativos em Toronto, Francisco afirmou que a eutanásia “nunca é fonte de esperança ou preocupação genuína” com quem sofre.
No simpósio, organizado pela Santa Sé e os bispos canadianos, o Papa destacou que os cuidados paliativos são um “sinal concreto de proximidade e solidariedade” com os que estão a sofrer. Para Francisco, ajudar os doentes e moribundos a perceber que “não estão isolados ou sozinhos, que a sua vida não é um peso”, é um testemunho essencial de esperança e amor.
Citando a encíclica Fratelli Tutti, o Papa criticou a eutanásia como parte de uma “cultura do descarte” e rejeitou a ideia de que seja uma forma de compaixão. “A atitude de compaixão, que significa ‘sofrer com’, não envolve uma ação intencional para acabar com uma vida”, afirmou.
O debate em França
A proposta francesa para legalizar a eutanásia previa que apenas adultos maiores de 18 anos, franceses ou residentes no país, poderiam solicitar assistência médica para morrer, desde que fossem confirmadas três condições: uma doença grave e incurável, sofrimento intolerável e intratável, e decisão livre e consciente.
O projeto estipulava um período de reflexão antes da administração de medicamentos letais, que poderiam ser tomados em casa ou sob supervisão médica. Contudo, pessoas com doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, não seriam elegíveis.
O tema divide profundamente a sociedade e a política francesa, com o presidente Macron a defender limites ao projeto e outros grupos a pressionar por maior abrangência.
A crítica a Portugal
No ano passado, Francisco também criticou duramente a aprovação da eutanásia em Portugal. “Hoje estou muito triste, porque no país onde apareceu Nossa Senhora foi promulgada uma lei para matar. Mais um passo na grande lista de países com eutanásia”, disse o Papa em maio de 2023, numa audiência com representantes da União Mundial das Organizações Femininas Católicas.
A mensagem foi proferida no dia das celebrações das Aparições de Fátima, e Francisco evocou a humildade e a força espiritual como exemplo para enfrentar as adversidades.
Próximos passos e a visão da Igreja ao longo do tempo
A defesa de Francisco pelo “fim natural da vida” é também um tema que o Papa levará ao encontro com Emmanuel Macron, marcado para 15 de dezembro, durante uma conferência na Córsega sobre religiosidade mediterrânica. O debate sobre o fim da vida promete continuar a ser um ponto sensível na relação entre as posições da Igreja e os avanços legislativos na Europa.
A eutanásia tem sido historicamente rejeitada pela Igreja Católica, sendo vista como contrária aos princípios da dignidade humana, à sacralidade da vida e à lei moral natural. Essa posição deriva de uma compreensão teológica, ética e pastoral que valoriza a vida como um dom de Deus e considera a morte um momento que deve ocorrer naturalmente, sem intervenções que a antecipem intencionalmente. No entanto, a forma como a Igreja expressou essa rejeição e lidou com o tema tem evoluído ao longo dos séculos, acompanhando os debates culturais e éticos sobre o assunto.
Nos primeiros séculos do cristianismo, a eutanásia foi condenada como uma forma de homicídio, em linha com os Dez Mandamentos, que incluem a proibição de matar (“Não matarás”). A vida era considerada sagrada e de responsabilidade divina, e antecipar a morte era visto como uma violação da ordem estabelecida por Deus.
Os Padres da Igreja, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, reforçaram essa visão. Santo Agostinho, por exemplo, argumentou no livro A Cidade de Deus que tirar a própria vida ou a de outra pessoa, mesmo em casos de sofrimento, era pecado, porque a vida pertence a Deus. São Tomás de Aquino, na sua obra Suma Teológica, descreveu o suicídio como um pecado contra si mesmo, contra a sociedade e contra Deus.
Durante a Idade Média, a rejeição à eutanásia manteve-se firme, em parte devido à visão teocêntrica que dominava a sociedade. No entanto, a prática de cuidados paliativos rudimentares começou a ganhar espaço, principalmente em instituições religiosas que acolhiam doentes e moribundos, como hospitais administrados por monges e freiras.
Na Idade Moderna, com o Renascimento e a Reforma Protestante, o debate sobre o papel da medicina e o sofrimento humano começou a expandir-se, mas a Igreja continuou a condenar qualquer ato que intencionalmente antecipasse a morte.
Com os avanços médicos, o debate ético sobre o fim da vida tornou-se mais complexo. No século XIX, o conceito moderno de eutanásia começou a surgir, geralmente associado à ideia de aliviar o sofrimento intolerável. A Igreja, porém, reforçou a rejeição, principalmente com o Papa Pio XII, que abordou o tema explicitamente no século XX.
Pio XII, num discurso de 1957, fez uma distinção importante entre eutanásia ativa (intencionalmente causar a morte) e recusa de tratamento desproporcional (permitir a morte ao não prolongar artificialmente a vida). Afirmou que não é obrigatório usar “meios extraordinários” para prolongar a vida, mas que causar a morte de forma direta e intencional é moralmente errado.
O Concílio Vaticano II (1962–1965) reafirmou o valor da vida humana e a obrigação moral de proteger os vulneráveis. Desde então, a Igreja tem aprofundado a sua posição, especialmente à medida que questões como a eutanásia, o suicídio assistido e os cuidados paliativos ganham destaque nos debates éticos e políticos.
João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae (1995), condenou a eutanásia como parte de uma “cultura da morte”, defendendo que o sofrimento humano, apesar de ser um mistério, pode ter um valor redentor. Já Bento XVI enfatizou a importância dos cuidados paliativos e criticou a eutanásia como uma tentativa de “controlar” a morte, em vez de aceitá-la como parte da condição humana.