A instabilidade política fazia-se sentir há já algum tempo e a rutura parecia inevitável. Com a demissão ao fim de três meses exatos da tomada de posse, Michel Barnier, primeiro-ministro dos Republicanos, de centro-direita, escolhido pelo Presidente Emmanuel Macron na ressaca de umas eleições legislativas conturbadas, torna-se o político a ocupar o Palácio do Eliseu por menos tempo.
A moção de censura apresentada pela coligação que junta todos os partidos da esquerda foi apoiada pelo Rassemblement National, após Barnier ter invocado o artigo 49.3 da Constituição francesa, que prevê a aprovação unilateral do Orçamento do Estado. A decisão foi arriscada e abriu o caminho para uma moção de censura que estava destinada a passar com maioria.
Assim, um dos motores da União Europeia mergulha definitivamente numa crise política durante um período económico delicado e numa altura de desafios múltiplos não só para França como também para a União Europeia. A situação é também preocupante na principal potência europeia, a Alemanha, ainda que com diferenças evidentes, e adivinham-se tempos tortuosos para a União.
O panorama sociopolítico em França tem sido atribulado. E questões como a imigração e a economia ocupam uma grande porção do debate público e a aparente inação do centro – liderado por Emmanuel Macron – levou os franceses a optar por outras vias. A contestação ao Presidente tem-se intensificado ao longo deste último mandato, e a ascensão do Partido liderado por Marine Le Pen tem sido notável.
Coligação contranatura
A crise, que já se adivinhava, começou em junho. Nas eleições para o Parlamento Europeu, o Rassemblement National venceu de forma esmagadora, conseguindo garantir 30 assentos em Bruxelas. A vitória inequívoca de Le Pen, juntamente com a queda a pique da coligação liderada pelo Renaissance – que passou de 23 para 13 eurodeputados –, colocou Macron entre a espada e a parede. O Presidente francês optou por dissolver o Parlamento e convocar novas eleições logo para o final do próprio mês, talvez já com as presidenciais de 2027 em mente.
O que se seguiu foi a instabilidade. A tentativa evidente de travar Marine Le Pen levou a esquerda a forjar uma coligação contra-natura, a Nova Frente Popular, que juntou o La France Insoumise, os Ecologistas, o Partido Socialista, o Partido Comunista e outros partidos de menor dimensão da esquerda e da extrema-esquerda francesa.
O Rassemblement National venceu a primeira volta com 33% dos votos, seguido da Nova Frente Popular (28%) e pelo Renaissance de Macron (21%). O resultado, que não foi surpreendente, caiu como uma bomba. Milhares manifestaram-se e apelou-se ao combate à extrema-direita, com o ex-Presidente socialista e candidato da coligação François Hollande a pedir que se formasse uma união «o mais ampla possível» no combate a Le Pen. «O Presidente da República parece ter desaparecido. A maioria está em frangalhos. […] temos o dever imperioso de garantir que a extrema-direita não consegue ter maioria na Assembleia Nacional», disse, à data, Hollande. Também o então primeiro-ministro, Gabriel Attal, definiu como objetivo travar a extrema-direita.
Os esforços parecem não ter sido em vão, e a esquerda conseguiu mesmo vencer a segunda volta das eleições e a coligação passou a ser o maior bloco da Assembleia com 182 deputados. O Rassemblement National e aliados contam com 143 assentos. O impasse foi criado e abriu-se uma nova crise: quem deveria liderar o Governo? Macron tomou uma decisão (mais uma) arriscada. Após dois meses de incerteza, nos quais decidiu manter Gabriel Attal, o líder francês nomeou Michel Barnier, dos Republicanos, para chefiar o executivo. Estava criado um caldeirão político destinado a transbordar.
A queda de Barnier
Michel Barnier assumiu as rédeas do Governo francês num momento de alta tensão e ciente da missão impossível que tinha pela frente. A composição do Parlamento francês era imprópria para governar, com os bloqueios de um lado e de outro a representarem uma montanha demasiado íngreme que impedia qualquer tipo de reforma. O momento-chave seria a aprovação do Orçamento do Estado.
A clara oposição da esquerda e a intransigência de Le Pen forçaram o primeiro-ministro a invocar o artigo 43.9 da Constituição francesa: «O Primeiro-Ministro pode, após deliberação do Conselho de Ministros, comprometer a responsabilidade do Governo perante a Assembleia Nacional sobre o voto de um projeto de lei de finanças ou financiamento da previdência social. Nesse caso, esse projeto é considerado como adotado, exceto se uma moção de censura, apresentada nas vinte e quatro horas que se seguem, for votada nas condições previstas no parágrafo precedente». Assim, as portas ficaram escancaradas para uma moção de censura inevitável.
Barnier ainda tentou negociar com o Rassemblement National, anunciando o abandono das reduções planeadas para a taxa de reembolso nos medicamentos, o abandono de planos para aumentar os impostos sobre a eletricidade e ainda uma redução na ajuda médica financiada pelo Estado para imigrantes ilegais, como noticiou a Euronews. As alterações não satisfizeram Le Pen, que via a indexação total das pensões à inflação como indispensável, o que fez a direita ultraconservadora apoiar a moção de censura apresentada pela esquerda. Tratava-se de um Orçamento austero, com os olhos postos na redução do défice e onde se previa um corte de 40 mil milhões de euros nas despesas públicas e um aumento de impostos na ordem dos 20 mil milhões de euros.
Assim, e pela primeira vez em 62 anos, o Governo cai nestas circunstâncias e Macron está encarregue de nomear um Governo de gestão de forma a tentar mitigar o impacte negativo deste imbróglio político-financeiro, num país cujos indicadores económicos não são animadores.
Em declarações ao país, Emannuel Macron assumiu responsabilidades, mas não deixou de culpar a extrema-esquerda e a direita conservadora: «Porque é que os deputados agiram assim? (…) Não pensam nos problemas das pessoas. (…) Eles só pensam numa coisa: na eleição presidencial».
De momento, passará uma medida de modo a tentar manter uma certa estabilidade orçamental e a hipótese de demissão ficou claramente descartada. «Vou cumprir o mandato até ao fim», garantiu o Presidente gaulês, que se assumiu como defensor da República.
Impacto generalizado
A reação imediata dos mercados foi de relativa estabilidade, com a bolsa parisiense a registar ligeiros ganhos, na ressaca da queda do Governo. Esta estabilidade deve-se, em grande parte, ao ajuste antecipado no início da semana, quando já se previa que a o fim do executivo era inevitável.
Ainda assim, a XTB avisava: «A situação da dívida do país continua a ser precária e a diferença entre as taxas de juro das obrigações do Tesouro francesas e alemãs pode continuar a aumentar, embora seja pouco provável que conduza a uma crise financeira em grande escala devido à proteção oferecida pela zona euro». «Prevê-se que o crescimento continue a abrandar, o que irá agravar os desafios no mercado de trabalho, e a atual instabilidade irá colocar uma pressão adicional sobre as finanças públicas. A combinação de um crescimento lento e de um défice crescente tornará mais difícil para França cumprir os seus compromissos orçamentais a longo prazo», acrescenta a corretora de investimentos.
Com isto, a situação na União Europeia parece cada vez mais complicada. O eixo franco-alemão, o principal motor da economia europeia, está debilitado. A Alemanha, que, ao que tudo indica, passará por um momento de estagnação ou até de recessão, também apresenta um cenário político pouco animador, com o Governo a cair no último mês e com eleições marcadas para janeiro do próximo ano. Prevê-se o crescimento do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), mas, por enquanto, a CDU, de centro-direita, lidera as sondagens e deverá chefiar o próximo executivo germânico. Ainda assim, os equilíbrios parlamentares deverão ser mais difíceis, dada a queda substancial que se prevê para o Partido Social Democrata.
Num momento desafiante a nível internacional, a União Europeia está com problemas no motor e apresenta debilidades evidentes. A situação tanto em França como na Alemanha terá consequências negativas para todos os restantes Estados-membros, principalmente para o que mais beneficiam de fundos europeus – grupo do qual Portugal faz parte –, e a instabilidade política nos dois grandes polos é mais uma machadada no caminho que se quer traçar rumo à competitividade da União.