Luís Boa Morte. Nova vida! 

Pela primeira vez a assumir o cargo de treinador principal, Boa Morte aceitou o desafio de ser seleccionador da Guiné Bissau. Uma tarefa dura que não começou bem, com a eliminação da Taça de África frente a Moçambique. Mas o Luís continua crente. Em Março regressam os jogos, agora para o apuramento para o Mundial.

BISSAU – A desilusão chegou ao cair da tarde no Estádio 24 de Setembro. A Guiné precisava de bater Moçambique por 1-0 para seguir para a fase final da Taça de África mas acabou derrotada por 1-2 pela equipa treinada por Chiquinho Conde. Os milhafres pairam sobre o relvado como se fossem um sinal de má sorte. O bafo do calor envolveu o jogo e os espectadores que não deixaram, por isso, de viver intensamente os acontecimentos. Escoam-se agora pela Avenida 3 de Agosto, em grupos que alargam conversas, ignorando as mulheres que vendem bananas e os cães vadios que correm por toda a parte até pararem para coçar a escabiose até ao sangue.

Há tantos anos que conheço o Luís, foi um dos meninos com quem trabalhei na Selecção Nacional, é uma das pessoas mais contagiosamente simpáticas com quem me cruzei. O sorriso que sempre abre fechou-se durante uma conferência de imprensa abandalhada na qual alguns jornalistas do contra insistiram para que pedisse desculpa ao povo da Guiné pela eliminação. «Esta gente não percebe as dificuldades com que vivemos. E a diferença que há entre a organização de Moçambique e da Guiné», diria mais tarde no hotel da selecção guineense. «Os moçambicanos jogaram o último jogo em Maputo e voaram directamente para cá. Um voo de oito horas. Nós jogámos em Nespruit, na África do Sul, frente a eSwatini (antiga Suazilândia) e regressámos em dois grupos, tendo os jogadores de voar para Joanesburgo, de Joanesburgo para Paris, de Paris para Conacri e finalmente para Bissau. Deram meia volta ao mundo. Como se pode preparar uma equipa assim? Dar-lhes descanso e pouco mais. Aliás viste que entrámos com um ritmo forte mas pela meia hora já havia muitos deles a acusarem cansaço».

É a primeira vez que Luís Boa Morte exerce as funções de treinador principal. É-lhe penoso começar com um objectivo não cumprido, mas é assim que se rege o futebol: impiedosamente. E logo no difícil contexto de ser seleccionador de uma equipa com carências. «É verdade amigo, optei por um caminho complicado nesta minha primeira experiência como treinador. Aumentei o factor desafio. Mas não estou arrependido». De facto não parece. Três horas depois do jogo já se prepara para reunir a equipa técnica e para fazer as malas para regressar a Lisboa no voo do dia seguinte. Nada nele revela desistência. Em Março voltam os jogos, agora de qualificação para o Campeonato do Mundo de 2026.

– Estavas farto de ser adjunto?

– Sim. Tinha projectado tornar-me treinador principal. Tive essa experiência no Portimonense e no Fulham mas a trabalhar com as camadas jovens. Estava na altura de me tornar independente. Ainda fui adjunto no Maccabi Haifa e no Everton. Apareceu esta oportunidade e aceitei com gosto.

Em 1997, com ainda 19 anos, sem nunca ter jogado no Sporting, clube que detinha o seu passe, e apenas na filial do clube de Alvalade, o Lourinhanense, chamou a atenção de Arsène Wenger e transferiu-se para o Arsenal. A sua vida mudou radicalmente. Inglaterra como que o engoliu: esteve dois anos no Southampton, sete no Fulham e quatro no West Ham. Depois alargou fronteiras:_Larissa, na Grécia, Orlando Pirates, na África do Sul, e o inevitável regresso, desta vez com menos ambições: dois anos no Chesterfield. Passou a assumir o cargo de adjunto no Fulham, onde trabalhou com Marco Silva. Até chegar o momento de dizer chega e tomar o caminho de África e de Bissau, Guiné, esse país belíssimo, Filha Enjeitada do Império, sítio onde os portugueses nunca investiram, sobrando igrejas, uma ou outra casa colonial, e uma aflitiva ausência de estradas que nos faz viajar para o interior aos solavancos das picadas, cada quilómetro parecendo vinte.

 Esperar por Março

Os jogadores, já vestidos à civil, vão surgindo para cumprimentar Boa Morte, despedindo-se até ao próximo ano. Revelam todos respeito e carinho pelo seu treinador. À primeira vista, o grupo está com ele.

– Infelizmente este primeiro objectivo não foi cumprido…

– E já tens gente a rogar-te pela pele.

– Que queres? Aqui é mesmo assim. De cada vez que há uma eliminação, o treinador sai. Já expliquei a direcção da federação que assim não há objectivo que aguente. Ou acreditam num projecto e dão tempo para que esse projecto seja implementado, ou então continuarão parados no tempo.

– Mas segue-se em breve outro desafio.

– Pois. Em Março temos dois jogos para a classificação para o Mundial. Um com a Serra Leoa e outro com o Burkina Faso. Tenho de fazer um apanhado sobre o que correu menos bem, perceber as razões deste insucesso e começar já a planear os próximos passos. Estamos a 4 pontos do Egipto, que é muito forte, mas também há apuramento para os quatro melhores segundos. Faltam seis jogos para o fim da qualificação e somos o sétimo melhor segundo. Precisamos de fazer um esforço para subir.

– Depois de tantos anos em Inglaterra, sentes-te mais inglês ou português?

– Sim, foi em Inglaterra que me tornei jogador e me formei como homem. Cheguei lá ainda antes de ter vinte anos. Confesso que tenho muitos hábitos ingleses, estou mergulhado na cultura inglesa, é um país que me acolheu bem e do qual gosto muito. Claro que Portugal é o lugar onde nasci, mas para ser sincero eu diria que estou 50/50. Dividido em metade pelos dois.

– Sei que tens uma opinião forte pela falta de oportunidades que se apresentam aos treinadores negros na Europa.

– Sim. Mas não quero entrar pela lamúria do racismo. Prefiro encarar o facto como resultado da ignorância. Não sei porquê mas nem sequer abrem lugar para uma entrevista e perceber o que pode valer o treinador.

– Como se muda isso?

– Sinceramente não sei. Esta recente ida do Patrick Vieira para o Génova pode ser que abra oportunidades em Itália. Quebra uma barreira. Depois temos o Kompany no_Bayern e o Liam Rosenior no Estrasburgo. Vai depender dos resultados que obtiverem.

– Por outro lado, em África são cada vez menos os seleccionadores brancos.

– Sim. Já não há aquela mania de trazer holandeses, alemães ou franceses. Apostam mais na gente da casa. Por mim, sou um cidadão do mundo. Trabalho feliz seja onde for.

A escuridão já tomou conta das ruas. Atravesso o bairro de Cuntum. Gente junta-se em frente das portas dos bares para beber umas minis. Os porcos pequenos e cinzentos ganham à-vontade para saltarem para a frente dos faróis do carro. Bissau adormece tarde. Há uma frescura do sereno que não pode ser desperdiçada. Amanhã a terra voltará a ferver.