O Matuto gosta de pintura. Naturalmente que o Matuto é apenas um curioso. Mas um curioso com um grão de espanto na asa. O Matuto lembra-se perfeitamente de um belo dia de chuva miudinha, em que acordou com uma urgência nos sentidos: Precisava ver aquele laranja-fogo-terra-vácuo numa certa pintura de Turner. Lampeiro, o Matuto pisgou-se cedo para a National Gallery de Londres, e plantou-se em frente de Rain, Steam and Speed, pintura ímpar de William Turner. Sublime – suspirava o Matuto. (https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/joseph-mallord-william-turner-rain-steam-and-speed-the-great-western-railway).
Mais ainda: O Matuto garante de fonte segura que há outras pinturas marcantes, neste mundo. Uma delas é a Madonna del Pellegrini, do incontornável Caravaggio. https://www.saturdaysinrome.com/blog/discover-caravaggio-madonna-di-loreto/
O Matuto teve um encontro imediato com a Madonna de Caravaggio, na Basília de Santo Agostinho, em Roma. Na humilde opinião do Matuto, é uma pintura moderna. Moderníssima. Em primeiro lugar – considera o Matuto – pelo escândalo. O perfume escandaloso aparece no que não aparece. Porque naquela época, (corria o ano de 1604) era obrigatório retratar o divino. Só que Caravaggio resolve pintar o divino, desenhando uma Madonna que fulgura numa figura ostensivamente humana. O Matuto observou pasmado, aquele equilíbrio de pés descalços, em que a Madonna “parece ensaiar uma dança silenciosa” – como diria Eduardo Prado Coelho. E é nessa dança e contradança (como diria Diniz Machado) que palpita uma humanidade residual. Pura, límpida, despida de qualquer traço divino. Neste quadro – considera o Matuto – se Deus não morreu, à la Nietzsche, está pelo menos ausente. O sublime foi escorraçado – lamenta o Matuto. Escândalo!
Depois – considera o Matuto – temos o vândalo. Caravaggio pinta uns peregrinos desdentados (veja-se o detalhe da velha), de pés sujos e calejados que não são matéria prima de arte religiosa. Na verdade, “matéria” seria coisa impensável. Anunciava-se o “etéreo”. O sentido de decorum pós-Trento, exigia outra pose espiritual. Daí os poderes religiosos de Roma terem interditado a obra. Mas aqueles pés! O Matuto fica matutando nos pés do peregrino. Rudes, agrestes e “obscenos”. Convidando a uma comunhão com o divino (a figura da Madonna). Porém, são pés “trop humain”, demasiadamente humanos. Pés despojados. São pés pós-lapsários. Quedados no pecado original. O sublime indefeso – pontua o Matuto.
O Matuto sabe de fonte insuspeita que a técnica usada por Caravaggio é o “chiaroscuro” do mestre da Vinci, e eternizado por Rembrandt. Por este meio, a graça da luz e da sombra, são realçadas nos rostos dos peregrinos, mantendo partes inteiras do quadro, na escuridão. Como se dois mundos co-habitassem na tela: um na escuridão, e outro na luz. E a virgem – constata o Matuto – está mais do lado de cá, o lado dos peregrinos sujos, onde habita a luz. Peregrinos de pés doridos, singelos, insólitos, quotidianos, banhados pela luz do Advento. O Matuto lembra uma passagem Bíblica que fala em “pés formosos” (Isa. 52:7). São formosos os pés dos que anunciam Boas Novas, os que fazem ouvir a Paz e falam de Salvação. Sublime verdade – no parecer do Matuto.
O Matuto consulta diligente o dicionário. “Formoso” vem do latim formosus, e tem a ver com uma forma de aparência agradável, o que é belo e aprazível, harmonioso e esplêndido. O Matuto considera que o adjectivo “formoso” encaixa que nem uma luva em Jesus que “sendo em forma de Deus, se esvaziou, e tomando a forma de servo, fez-se semelhante aos homens” (Fil. 2:7). Ele teve pés sujos de poeira. Ele teve pés sangrentos. Ele teve os Seus pés ungidos e lavou pés foragidos. Os pés de Jesus eram formosos porque eram pés (também) humanos. Ele é “formoso”. Totalmente agradável! Ao se despir do divino, tornou-se perfeito homem. A única subtração por adição, em todo o Cosmos. Isto – afirma o Matuto – é sublime!