Manteiga ou canhões

A defesa da Europa ocidental sem um empenhamento forte dos EUA será muito difícil.

As primeiras edições do Economics – o famoso manual de Paul Samuelson que educou gerações de economistas – ilustravam o problema da escassez e da concomitante necessidade de escolha recorrendo à alternativa do título. Então eram os tempos da guerra fria, mas a escolha é de novo crítica. Ela parece, contudo, ignorada em Portugal. Só o PCP a trouxe à ribalta quando, no último debate quinzenal, perguntou que programas sociais iria o governo sacrificar para atingir a meta de 3% do PIB destinados à defesa. A procura de dividendos era clara, mas a questão é pertinente: mais canhões e menos manteiga?
A defesa da Europa ocidental sem um empenhamento forte dos EUA será muito difícil. A defesa e segurança coletivas no âmbito da NATO são bens públicos pois não é possível (material, política ou moralmente) garanti-las para um membro excluindo outros. Sabendo isto, cada estado desejará que todos os outros invistam o mais possível na segurança coletiva gastando ele o menos possível. Assim, os estados, em particular aqueles que menos sentem uma ameaça direta, têm incentivos a ‘ir à boleia’ dos outros, protelando, mitigando ou mesmo mascarando a escolha entre ‘manteiga e canhões’.
Este problema de coordenação só tem duas soluções. A que existia, e que era os EUA bancarem o essencial da capacidade militar da NATO. Protegidos pelo músculo militar americano os estados europeus puderam desviar recursos para fins sociais e prosseguir políticas externas próprias, quantas vezes desalinhadas com as do protetor. Este foi um modelo que não obrigou a escolhas difíceis entre ‘mais canhões ou mais manteiga’ e, por isso, sobreviveu sem pôr em causa a União. Mas só até quando o protetor permitir. E, ao que tudo indica, deixará de o permitir.
A solução alternativa, é a Europa assumir a sua defesa coletiva dentro da NATO (com os EUA funcionando apenas como um garante nuclear de última instância). À primeira vista, a Europa tem meios para tal. Como um relatório recente do European Council of Foreign Relations (’Defending Europe with less America’) notava, os aliados europeus gastaram em defesa em 2023 quatro vezes mais do que mais que a Rússia; as suas forças militares combinadas são maiores que os da Rússia ou dos EUA; cinco países europeus estão entre os principais dez exportadores globais de armas; e, por último, os aliados europeus gastam agora mais €159 mil milhões por ano do que há 10 anos, (mesmo assim, menos em percentagem do PIB do que gastavam durante a guerra fria). Mas esta abundância é mais aparente que real. De acordo com o mesmo relatório, muitos exércitos europeus tornaram-se “exércitos de bonsai”, que oferecem apenas amostras de capacidades importantes, em vez de forças grandes, robustas e prontas para o combate.
Contudo, a dificuldade mais profunda e frequentemente ignorada é que a União Europeia não extinguiu as Nações sobre os quais se construiu, e cujos alinhamentos externos seculares não se esbatem com a mera existência de um Alto Comissário para as Relações Externas. Esses alinhamentos e interesses dão origem a fraturas entre os europeus na questão primeira de qualquer estratégia de defesa e segurança que é a da definição dos inimigos e da política de alianças aliados, como as posições divergentes perante a ameaça russa, o Médio Oriente ou a China revelam claramente.
Conceptualmente a UE encontra-se num momento que tem paralelo ao vivido nos primórdios da República Americana quando se confrontaram a visão confederal mais lassa de Thomas Jefferson com a de um estado federal forte de Alexander Hamilton, a qual acabou por prevalecer. Temo bem que, também na UE, sem uma vitória à la Hamilton não possa existir uma defesa comum credível em alternativa ao protetorado americano.