Jean Genet. Um buquê de assassinos

Numa tradução inteiramente revista por esse “engenheiro das letras” que é Aníbal Fernandes, regressa às livrarias o primeiro romance desse anjo tenebroso que, ao cantar a traição, revolveu a arte romanesca, oferecendo à intelectualidade francesa um ato de sublevação contra a sua boa consciência.

Há livros que, apesar da pelagem, musgo, líquen, feições de monstro, parecem destinados a passar despercebidos aos olhos irrequietos dos caçadores. Sem arvoredo onde se esconder, um Bisonte chegou ao terreno raso das livrarias com uma brandura que dissimula a selvajaria de que é capaz. Os caçadores confundem-no com uma colina e continuam atrás dos pardais para a gaiola em que se tornaram. Num ano em que a Editora Maldoror plantou cinco archotes no meio do breu, de Isidoro Blaisten a José Emílio Pacheco, apenas para citar dois, o último corre o risco de não ir espatifar o presépio, por pensarem que o conhecem. “Nossa Senhora das Flores” de Jean Genet, traduzido por Aníbal Fernandes, é o contrário de um déjà vu. Longe de um voltar a lume, do antigo livro da Difel, numa beleza rosada, é outro animal o que nos chega pelas mãos cuidadosas de uma editora que não se deixa cair em enredos distrativos.
Quem conheça o trabalho de Aníbal Fernandes, a quem Luiz Pacheco chamava o engenheiro das letras, saberá que não agarraria numa tradução sem ver se as estruturas se aguentam, se os materiais não cederam às intempéries. Neste caso, parece ter reescrito quase de raiz o trabalho anterior. Ao primeiro olhar sentimos que as frases mudaram de articulações, que o corpo tem as dobradiças noutro lugar. É um animal que se move com uma agilidade bravia, a força que atravessa as pálpebras e conhece as charneiras que fazem dobrar o corpo corre como electricidade nesta tradução. Alterou muitas formulações, aproximadas da lírica explosiva que acompanha o percurso labiríntico do livro. A linguagem que nos leva através das fulgurações poéticas de Genet corresponde à eficácia da beleza, aquela que, segundo ele, deve ter a força de um crime.
Abandonado pela mãe aos sete meses de idade, Genet foi criado por camponeses numa região pobre de França. Cedo se descobria um espírito vivo e sonhador que abominava a ocupação forçada. Aos 14 anos termina com mérito o ensino obrigatório, mas, apesar do esforço do professor para que continue os estudos, a assistência social encaminha-o para a região de Paris de modo a ingressar na profissão de tipógrafo. Seria desta instituição que faria a sua primeira fuga. Fugir da formação laboral era escapar-se de um país produzido pelo trabalho, a recusa de ser cidadão de um mercado. Uma sociedade que lhe impunha uma única forma de existência só mereceria uma traição perpétua. Este facto marcou o início de um ciclo de roubos, pequenos furtos e prisões, primeiro no reformatório La Petite Roquette, antes de ser colocado em 1926 na penitenciária de Mettray. No texto “a criança criminosa”, que fez para a rádio, escreve: “Porque é preciso um senhor orgulho, uma formosa coragem, para nos opormos a uma sociedade tão forte, às mais severas instituições, a leis protegidas por uma polícia com força que tanto está no fabuloso, mitológico, informe temor que instala na alma das crianças, como na sua organização.”
Genet passou a adolescência de interrogatório em interrogatório, num confronto perpétuo com a língua de notário dos tribunais. A sua vida, transcrita no vernáculo administrativo, é anotada desde os sete meses de idade e registada de modo mais constante a partir dos 14, pelas instituições penais que frequentou. A tentativa de domesticação do seu corpo pelo dispositivo e a passagem pelos teatros do poder, ensinam-lhe que existem homens que julgam outros homens sem correr qualquer tipo de perigo. A língua administrativa é um instrumento sem corpo, sem uma singularidade que estremeça na presença do perigo a que sujeita os outros. Neste teatro, os únicos personagens que têm um saber, um vínculo, um corpo, são os criminosos. Face a esta história, tatuada nas suas costas por um aparelho penal, Genet travará uma guerra sem tréguas, escreverá a sua contra-história, a sua lenda. Um combate travado na língua, através de uma fabulação que o devolverá à vida. É pela construção de um labirinto que se escapa à célula onde está fechado.
“Nossa Senhora das Flores” é o seu primeiro romance. Escrito durante a detenção em Fresnes sobre o papel pardo que davam aos prisioneiros para a fabricação de sacos. Foi queimado por um guarda que antipatizava com ele e recomeçado novamente, sendo editado clandestinamente em 1943. Desde a primeira linha marca a delimitação da sua singularidade, a fronteira com os que estão do lado de lá dos muros: “Wiedmann aparece-vos”, esta diferença entre o que fala e aquele a quem fala, que Gallimard queria corrigir por um “aparece-nos”, e que escapou à tradução anterior, é capital. É ela que nos exclui da pertença secreta dos párias. Nós os que estamos fora da prisão, dentro da ordem que não somos capazes de romper, desprovidos da audácia que nos levaria a largar o conforto, a pagar o preço de um desejo, apenas lhe tocamos pela beleza, que para Genet nos atinge como um punhal. O romance começa com a indicação direta do narrador; vocês que sabem da morte desta flor no jornal das cinco, que apenas reconhecem o desprezível assassino, autor de seis crimes atrozes, estão irremediavelmente proscritos do gozo daquele que vos vai mostrar como os assassinos desabrocham depois de mortos. O hiato reivindicado, aprofundado e desejado entre ele próprio e a sociedade é imponderável. Genet aspira e trabalha ativamente para a desgraça, a rutura e a estigmatização, numa força estilística copiosa, declara-se culpado, recusa a clemência, os perfumes da vitimização e faz santos de assassinos, como Weidmann e Maurice Pilorge, a quem dedica o livro. “Nossa Senhora das Flores” é um livro de evocações, da criação viva da palavra. A partir das vozes quebradas, dos retratos de rostos vazios, das formas angélicas impalpáveis como perfumes, do seu desejo, nascerão as flores. Como Adão das mãos da divindade, Genet fará um jardim dos fragmentos colhidos. Aquele que vive como um morto fechado numa tumba, terá de enfrentar o vazio que mais o horroriza, seja a transparência dos anjos ou os olhos azuis dos retratos, o palco do teatro ou o deserto amputado do infinito. Essa parte noturna do homem que, como nos diz, não podemos explorar sem estar armados, sem estar besuntados, sem estar perfumados, sem estar cobertos de todos os enfeites da linguagem.
É com estes instrumentos que Genet se vai dedicar àquele que é o primeiro dos seus anti-valores: a traição. Esta qualidade, se a pudermos chamar assim, está presente em toda a sua obra. Em “Nossa Senhora das Flores”, começa por nos dizer que Maurice Pilorge, a quem o livro é dedicado, era um menino “que traía por trair”, quando o fuzilaram. Os traidores do seu romance são seres de aparições súbitas, são “solitários cintilantes”, cujas afinidades com os diamantes gosta de sublinhar. A imagem do traidor é esquiva e vertiginosa. A traição dos que afrontam a ordem, dos que se põem em risco, não pode ser comparada com os pequenos fingimentos que vemos ao nosso redor, os quais, na maioria das vezes, são uma incapacidade de trair, limitando-se a escolher a sua máscara em detrimento do mundo. A traição é para os que “possuem o sinal sagrado dos monstros”, para não a confundirmos com a impotência medrosa dos que se isolam, lembremo-nos do que diz Céline: “Trair é fácil de dizer, no entanto, é preciso agarrar a oportunidade. É como abrir uma janela numa prisão, trair. Têm todos vontade, mas são raros os que conseguem.”

A escolha da metamorfose, da mutação, na qual, como escreve Sartre, cada instante significa um instante fatal, é a contradição activa de ser o que fomos e o que poderemos ser, somos nós mesmos e o outro. É o tempo do rapto, da passagem. A traição é o movimento do que se recusa a criar uma imagem fixa da vida. Trair deriva do termo latim Tradere, que significa entregar, fazer passar, que, por acréscimo, veio a designar: abandonar, denunciar, desertar. Uma deslocação que implica uma fractura na ordem de pertença, uma ruptura no tempo. Para que haja traição, é necessário um acto de amor, porque trair é parte integrante do acto de amar. Genet escreve no “diário de um ladrão”: “A ideia de trair Armand iluminava-me. Temia-o demasiado e amava-o demasiado para não querer enganá-lo, traí-lo, roubá-lo. Pressentia a volúpia secreta que acompanha o sacrilégio.” Sem amor, não pode haver traição, apenas uma mudança de opinião, de ponto de vista, de objectivo ou de direcção. A traição da ordem burguesa não é uma adesão a outra ordem, mas um afastar-se desse universo, como os amantes se afastam do que os embaraça, para onde cada um fala em nome próprio e afirma a sua diferença viva. “A boa vontade dos moralistas quebra-se contra o que eles chamam a minha má fé. Se me podem provar que um acto é detestável pelo mal que faz, só eu posso decidir, pelo canto que ele suscita em mim, da sua beleza, da sua elegância; só eu posso recusá-lo ou aceitá-lo.”