O Português (In)correto. Crónica de um país em modo consciente

A censura, essa velha amiga dos portugueses, também ela evoluiu com os tempos

O politicamente correto começou como uma ideia decente, uma versão adulta do princípio «não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem», adornada com floreios académicos e uma pontinha de superioridade moral que só se encontra em quem nunca foi apanhado a dizer «p*** que pariu» enquanto conduz.

Neste Portugal contemporâneo, é extraordinário como conseguimos ser um país onde coexistem pacificamente duas formas distintas de devoção. As antigas, como a procissão do Senhor dos Passos ou o almoço de família ao domingo, persistem como uma música do Tony Carreira numa festa de aldeia, com a mesma inevitabilidade de uma multa da EMEL. Já as modernas, onde influencers de mindfulness digital pregam que a vida pode ser resolvida com chás detox e velas aromáticas compradas na Primark, são uma espécie de franciscanismo new age.

Esta transformação teve início nos anos 70, como uma espécie de revolução em câmara lenta. Era suposto fazer com que as pessoas não fossem umas bestas umas para com as outras, o que, sejamos honestos, já era pedir muito a um povo que inventou a palavra «desenrascanço» como uma grande virtude transformada em identidade nacional. Uma mudança que começaria por alterar fundamentalmente a nossa relação com as palavras.

E é precisamente na linguagem que encontramos o primeiro grande campo de batalha desta revolução silenciosa. Antigamente, «dizer o que se pensa» era considerado uma qualidade, mesmo que a pessoa fosse um(a) idiota, pelo menos sabíamos ao que íamos. Hoje em dia, dizer algo fora da norma já não é apenas um mero deslize, é um crime de guerra linguístico. Já vi debates acesos sobre a utilização de «caro/a» num email, porque «e os não-binários?» No ritmo a que isto vai, daqui a uns anos começaremos as cartas com «Prezadíssim@x tod@s dxs serxs humanxs e outrxs entidades não classificadas». Camões, se cá estivesse, concerteza preferiria continuar cego.

A censura, essa velha amiga dos portugueses, também ela evoluiu com os tempos, como um vírus que foi para Erasmus e voltou todo moderninho mas sem perder aquele travo a culpa católica. Nos anos 40, tínhamos o Estado Novo a dizer-nos o que podíamos ler. Hoje, temos os tribunais populares no X (ex-Twitter) onde uma palavra mal escolhida pode desencadear um cancelamento mais rápido do que uma multa da EMEL. É como se a PIDE tivesse tido filhos com o algoritmo do Instagram e o resultado fosse uma espécie de Tribunal da Inquisição 2.0, só que em vez de fogueiras na praça pública, temos linchamentos digitais, com direito a hashtag trending topic.

Neste novo panorama digital, surgem então os ativistas de sofá. Essas almas virtuosas que passam os dias a salvar o mundo com a mesma dedicação com que procuram séries novas no Netflix. São contra a exploração, mas não abdicam do iPhone produzido numa fábrica onde o único plano de saúde é «não cair da linha de produção». Defendem o ambiente, mas estacionam o SUV em cima do passeio porque «não havia lugar».

Nas redes sociais, o ativismo digital português, requer apenas três ingredientes essenciais: um sofá confortável (de preferência do IKEA, montado com palavrões eco-friendly), um smartphone novo (porque o do ano passado já não tira fotos suficientemente conscientes) e uma capacidade sobrenatural de ignorar contradições, maiores que a fila do SEF. As biografias no Instagram então, são a maior antologia de poesia irónica desde os heterónimos de Fernando Pessoa, só que com menos talento e mais filtros. «Vegana consciente, mas só ao pequeno-almoço»; «Activista do sofá, especialista em revoluções de pijama»; «Chief Happiness Officer em burnout»; «Guru do mindfulness com ansiedade». É como um CV do LinkedIn, só que em vez de «pensamento fora da caixa», temos «pensamento dentro do tupperware».

E assim chegamos ao «woke», o primo sofisticado do politicamente correto. Ser woke não é só evitar ofender; é reinventar a ofensa. Por exemplo, não basta ser feminista, é preciso fazê-lo enquanto se desmantela o patriarcado através de stories com música da Billie Eilish. Estar woke exige dedicação, ou pelo menos uma capacidade atlética para saltar entre causas sem perder a pose.

Para entender melhor este fenómeno, basta observar o ritual de domingo no Colombo, uma performance que merece uma análise antropológica mais detalhada. Lá vai o cidadão consciente, AirPods Pro sintonizados num podcast sobre minimalismo, carregando cinco sacos da Primark cheios de «essenciais» – porque não há nada mais minimalista que comprar roupa nova para substituir a roupa nova do mês passado. Na fila do Starbucks, debate-se a escolha do café – tem de ser sustentável, orgânico, e com um nome maior que a tese de mestrado que nunca acabou.

A garrafa de água reutilizável de 5€ baloiça orgulhosamente ao lado do porta-chaves do seu SUV híbrido – aquele que é amigo do ambiente mas ocupa dois lugares de estacionamento, porque a consciência ambiental precisa de espaço para respirar. O cidadão consciente passeia assim com os seus sacos de compras «reutilizáveis», cheios de roupa barata feita por crianças no Bangladesh.

Na Fnac, folheia livros sobre «mindfulness» que nunca comprará (para isso existe o Kindle, que é mais ecológico, tirando aquelas cinco baterias mortas na gaveta da cozinha junto com os carregadores de todos os iPhones que acumulou desde 2010). No Celeiro, enche o cesto de superalimentos carregados de carbono, enquanto suspira pela «sustentabilidade». A caminho da saída, ainda tem tempo de partilhar nas redes sociais um manifesto contra o consumismo.

Todo este novo contexto social tem transformado a própria linguagem num campo minado onde cada pronome é uma potencial bomba de fragmentação moral. Já não bastou o Acordo Ortográfico ter traumatizado uma geração inteira, agora temos influencers de linguagem inclusiva a defender que até o «bacalhau à Brás» deveria ser «bacalhau à identidade fluída». Pelo andar da carruagem, as ementas dos restaurantes irão concerteza virar manifestos sociológicos: «Queridxs clientxs, experimentem a nossa francesinha plant-based com molho artesanal sem glúten produzido por um coletivo auto-gerido de micro-produtores da zona do Grande Porto».

Se Fernando Pessoa vivesse hoje, já teria sido cancelado por apropriação cultural dos seus próprios heterónimos. Camões teria de fazer um curso de sensibilização cultural antes de escrever «Os Lusíadxs», com um prefácio sobre privilégio histórico e uma nota de rodapé pedindo desculpa à Índia. Gil Vicente então, seria processado por assédio moral a Diabos e discriminação contra barqueiros – isso se o Auto da Barca não fosse primeiro multado pela ASAE por falta de coletes salva-vidas.

A verdadeira arte portuguesa já não é o fado ou o vira – é a capacidade de postar sobre sustentabilidade do interior de um Tesla encalhado no trânsito da Ponte 25 de Abril, defender o comércio local enquanto se faz uma encomenda na Amazon, e pregar sobre os benefícios de uma vida mais pausada enquanto se responde a mensagens do Slack durante um jantar de família.

É isto o Portugal moderno! Um país onde o politicamente correto se transformou numa religião com mais dogmas do que uma reunião de condomínio, e onde a única coisa que ainda nos une enquanto povo é a capacidade sobrenatural de transformar contradições em conteúdo para as redes sociais. Não é sobre sermos melhores pessoas, é sobre parecer que somos. Somos todos influencers da própria hipocrisia, numa performance digna de um Globo de Ouro da TVI – só que em vez de estatuetas, ganhamos likes.