O Chico Buarque cantava: «Para Mané/para Didi/para Mané Mané para Didi/para Mané para Didi/para Pagão/para Pelé e Canhoteiro». E o filho de Benedicto Luiz de Araújo e Perpétua Rodrigues enchia o campo com o seu futebol de firulas e tabelinhas, para Pelé, para Didi, seus companheiros do Santos, alegrando a Vila Belmiro. Porque seu Benedicto só resolveu batizá-lo já garoto, a malta das ruas de Vila Mathias, católica até ao tutano, benza-a Deus e os seus acólitos, tratou de lhe arrumar a alcunha de Pagão. Ficou. Paulo Sérgio Araújo, seu nome autêntico, nunca deu para decorar. O Chico adorava o homem. Pagão foi sempre o seu ídolo, jogasse ele no Santos, no São Paulo ou na Portuguesa Santista, e até no Jabaquara onde acabou a carreira com apenas duas presenças na selecção brasileira. «Injustiça descomunal!», gritaria o enorme Nelson Rodrigues naquele exagero de prosas que deviam levar sempre ponto de exclamação. Pouco jogou na canarinha, mas jogou no Politheama, a equipa de Buarque e seus comparsas que costumava disputar peladas rijas com os nossos de A Bola, quando vinha a Lisboa e em tempos que já lá vão.
O Chico falando: «Ele era demais em campo. Era um jogador de uma leveza admirável. Adorava quando ele pegava a bola no ar e, com a parte de fora do pé, vindo de trás, chapelava o adversário». Às vezes o Chico não via. Só ouvia. Sem dinheiro para pagar bilhete, ficava do lado de fora do estádio à espera do bruá da mutidão.Pagão jogando: era como se flutuasse. Pés de estola de vison, ou assim. Walter Dias, dos dias da rádio: «Classe como a dele, leveza e graciosidade como a dele, nem Pelé. Homem de futebol ritmo, de futebol enredo, de futebol arte». A arte do Chico: «No contrapé/Para avançar na vaga geometria/O corredor/Na paralela do impossível, minha nega/No sentimento diagonal/Do homem-gol/Rasgando o chão/E costurando a linha». Pagão costurado: vitima de lesões, de ataques brutos, de botinadas. Perseguiam-no no campo, acertavam-lhe em todo o corpo para baixo das amígdalas. Saía da equipa. Entrava. Saía outra vez. Jogador de linho. No Santos, Coutinho foi agarraando o seu lugar: «O maior centroavante que alguma vez vi», dizia o garoto da Vila, catorze anos e já no meio dos homens. O povão deu-lhe uma alcunha: Canela de Vidro. Pagão ficava triste. Pelé afirmando: «Metia bem bola, muito inteligente para jogar, muito rápido, mas não era um jogador de choque». E então, do outro lado, sinistro, o inimigo preparava o choque. Valia tudo para parar Pagão, o menino que foi baptizado demasiado tarde e usava camisa acima do umbigo. O Santos tinha Coutinho. Pagão sobrando. Queria jogar mas faltava espaço entre Pelé e Coutinho que não era nenhum canela de vidro. Em 1963 foi para o São Paulo por treze milhões de cruzeiros. No dia 14 de agosto, a sua equipa desfez o Santos: 4-1. OSantos e o seu orgulho.Não quis perder. Toda a gente armou uma confusão danada, Armando Marques, o árbitro, ia expulsando aqui e ali, até Pelé e Coutinho. A equipa saiu de campo sob um coro imenso de vaias. Pagão vencera Coutinho e Pelé. Canta, Chico, canta: «Um/Senhor chapéu/Para delírio das gerais/No coliseu/Mas/Que rei sou eu/Para anular a natural catimba/Do cantor/Paralisando esta canção capenga, nega/Para captar o visual/De um chute a gol/E a emoção/Da idéia quando ginga».
No dia 4 de Abril de 1991, o Canela de Vidro estava morto. O médico registou o óbito como se fosse uma letra de música. Ou como se fosse um passe musical de Pagão: «Falência múltipla de órgãos». Um morto por completo. Sem intromissões. Tinha 56 anos. Ainda tanto Pagão para viver noPagão morto. Nem de propósito: foi sepultado no Cemitério da Filosofia. O Destino não se esquece dos seus preferidos mesmo que tenham canelas de vidro. Uma saudade bateu nos adeptos do Santos. Uma espécie de culpa, também, por não terem protegido a arte do homem dos passes musicais. O futebol é mesmo assim: ingrato. Pagão segurando a bola como se pegasse num cachorrinho vadio. Fazia-lhe festas. E o cachorrinho correndo com ele sobre a relva, subindo no ar, descendo pelas costas dos defesas. Pagão fugindo alegre como o sabiá da gaiola. Ia piar no alto do carapeteiro. No alto das bancadas do Pacaembú que rebentava pelas costuras para ver os seus chapéus de mestre chapeleiro sem metafísica. Pagão furando defesas como se tivesse asas nos pés. Um Mercúrio frágil levitando entre homens comuns e brutos que não gostavam do seu sorriso torto de gato de Alice. Pagão, o único. O Chico que o diga. O Chico que continue a cantá-lo que nunca mais ninguém o esquece. O Canela de Vidro e os seus dribles afinados, musicais suaves como Bossa Nova. De vez em quando o golo e uma brisa. «Para Mané para Didi para Mané Mané para Didi para Mané para Didi para Pagão…».
Os passes musicaisdo Canela de Vidro
Pagão era o símbolo da leveza, frágil e com pés suaves como uma estola de vison, ou assim…