Jimmy Carter. Morreu o guardião moral da América

Foi o ex-Presidente norte-americano que gozou de maior longevidade, tendo morrido este domingo aos 100 anos, na pequena localidade de Plains, na Georgia, onde nascera a 1 de outubro de 1924.

Quatro décadas antes de Trump, Carter foi o artigo original, um político verdadeiramente anti-sistema, que se batia pelos valores tradicionais, e que prometeu drenar o pântano, depois dos escândalos de Watergate e da infame guerra no Vietname. Ele, sim, queria fazer dos EUA uma nação novamente digna e orgulhosa, prometendo não dizer uma só mentira ao eleitorado, e lutar pela igualdade social, sendo um caso isolado entre os líderes norte-americanos ao levar a efeito uma política externa voltada para a promoção da paz.

O verdadeiro vigor moral muitas vezes elude-nos devido ao seu carácter reservado, persiste na luta pelos seus fins de forma desinteressada, numa prova de resistência, e que não busca a publicidade, não se coloca no centro, aceitando ser desdenhado, esquecido, mas sem perder de vista os valores com os quais se comprometeu. Jimmy Carter, que emergiu de uma região agrária no sul segregacionista, tendo crescido numa casa sem eletricidade ou canalização, e chegou à Casa Branca da forma menos convencional possível, com a promessa de restaurar a fé dos EUA em si mesmo, depois de o país ter sofrido dois dos mais decisivos traumas na sua história recente, com o Watergate e a derrota no Vietname, procurando criar uma fundação nova, com base nos princípios da verdade, decência e compaixão. Se muitos obituários insistiam que o seu mandato singular à frente da administração norte-americana foi um fracasso, que Carter fez esquecer na segunda metade da sua vida dedicando-se à promoção dos direitos humanos, a verdade é que em anos recentes o seu legado tem vindo a ser reapreciado como um dos mais consequentes, sobretudo quando comparado com o dos anteriores e subsequentes ocupantes da Casa Branca. É certo que ele viu a sua aprovação popular precipitar-se de uns 70% no início do mandato para uns meros 28 pontos pouco mais de um ano depois de ter tomado posse, e que foi repudiado não apenas pela oposição como pelos membros do Partido Democrata, tendo enfrentado uma crise doméstica a nível económico a par da instabilidade no plano internacional, que culminou com a crise dos reféns no Irão.

No fundo, Carter enfrentou uma tempestade perfeita desde que chegou ao cargo, não só pela crise energética provocada pelo embargo petrolífero árabe, como pela subida da inflação e das taxas de juro, sendo que ele nunca quis dourar a pílula, e manteve o seu compromisso de nunca mentir ao eleitorado. Carter, que morreu este domingo, no seu estado natal da Georgia, aos 100 anos, rasgou o habitual guião político, e em vez de se limitar a apagar fogos, fez frente às estruturas do poder em Washington, tendo sido o primeiro Presidente a assumir o compromisso de drenar o pântano, mas havia um mundo de diferença entre a sua postura e a de Donald Trump, pois a sua promessa não foi apenas um slogan, e prova disso mesmo foi a resistência que encontrou da parte do congresso, dominado pelo seu partido.

De facto, ele imaginou que poderia refundar a forma de fazer política, mas ao virar as costas aos interesses e às grandes figuras do aparelho, trazendo consigo para a capital um conjunto de conselheiros e assessores que o acompanhavam desde os tempos em que fora governador da Georgia, não demorou a sentir que todos se uniram para o tramar, e em vez de ser visto como uma figura que tentava enfrentar a hidra, tudo o que resultou foi um enredo de distrações, impasses e desilusão, que se foi adensando até ao derradeiro momento da sua presidência, com a libertação dos 52 norte-americanos mantidos reféns ao longo de 444 dias depois da invasão da embaixada do país em Teerão por parte de estudantes e militantes islâmicos.

Teriam de passar décadas para que ficasse claro como, apesar das dificuldades que enfrentou, Carter obteve alguns êxitos notáveis durante o seu mandato, particularmente além-fronteiras. Como assinalava o The New York Times, as suas políticas de direitos humanos estabeleceram um novo padrão para a forma como os EUA deveriam lidar com governos abusivos. “O tratado de paz que conseguiu estabelecer entre Israel e o Egito ainda se mantém em vigor décadas depois. Assinou um acordo de limitação de armas estratégicas com a União Soviética e formalizou relações diplomáticas com a China. E, apesar da oposição de conservadores como Ronald Reagan, fez aprovar os tratados que entregaram o Canal do Panamá ao Panamá.” Um dos seus biógrafos, Jonathan Alter, em His Very Best: Jimmy Carter, a Life, defende que ele foi provavelmente o Presidente mais incompreendido da história americana, alguém que estava à frente do seu tempo em matéria de ambiente, política externa e relações raciais.

Num dos períodos mais conturbados da vida política norte-americana e em que aquela nação enfrentava uma verdadeira crise de valores, antes de vir Reagan com a charanga das reformas económicas que carregaram no acelerador com um ímpeto verdadeiramente obsceno, e que determinou o quadro de desigualdades sociais que hoje definem o degradante ambiente que atomizou as sociedades e dinamitou os princípios de entreajuda social e solidariedade, precipitando igualmente a calamidade ambiental com os efeitos e as crises que, hoje, se reconhecem por todo o planeta, Jimmy Carter foi o último líder que permitiu ao povo norte-americano confrontar os seus demónios e repudiar a falta de escrúpulos perfeitamente corporizada por Nixon, e que culminou no escândalo de Watergate. Com as suas calças de ganga de agricultor vindo da pequena localidade de Plains, onde nascera a 1 de outubro de 1924, no seio de uma família de produtores de amendoins, Carter traçava o perfil oposto, o de um homem decente, que não se deslumbrou com o poder nem deu sinais de ser suscetível face à ganância que define a ação política nos nossos dias. Com um sorriso largo e franco, ele marcava um contraste flagrante com o típico arrivista que se sente atraído pelo poder. Nos corredores de Washington ele, sim, estava muito longe de casa, era um forasteiro que tinha chegado ali com a intenção de reformar o sistema num momento em que a população havia perdido a fé nas instituições governamentais.

Embora os obituários mantivessem a campanha orquestrada no sentido de o apoucar e denigrir, recitando a ladainha de que o seu mandato “se tornou sinónimo de indecisão e fraqueza”, passam ao lado dessa marca de carácter de um homem que triunfou na primeira campanha que verdadeiramente se apoiou nas raízes populares e que, ao chegar à capital, não traiu nem ludibriou o seu eleitorado, mas demonstrou a podridão que já então dominava o regime bipartidário, e como os democratas fazem o trabalho sujo tão bem quanto os republicanos. E, no entanto, apesar do boicote e da sistemática oposição interna que sofreu, Carter conseguiu deixar uma marca de diferença e que assinalou um dos raros momentos em que se suspendeu a atitude de predação a nível de política externa, tendo sido um dos grandes pacificadores da sua geração com os acordos de Camp David, que uniram Israel e o Egito.

E se a sua presidência acabou por ser recordada sobretudo pelos seus fracassos, pela incapacidade de dar a volta a uma situação económica muitíssimo desfavorável, e em que Carter em vez de defender políticas de crescimento, assumiu uma postura responsável e foi o único líder naquele país a defender a contenção, e que o país deveria poupar nos gastos energéticos, mesmo se a sua passagem pela Casa Branca serviu tanto aos republicanos como aos democratas para garantir que não há alternativa, e que a única forma de fazer política é submeter-se ao aparelho, foi nos anos que se seguiram que ele acabou por impor-se como o modelo para a postura que deveria esperar-se de um chefe do Executivo. Em vez de desaparecer de vista ou de se resignar como tantos a apodrecer de rico, ele fundou o Carter Center para promover a paz, combater as doenças e a desigualdade social. Para exasperação de alguns dos seus sucessores, ele manteve uma postura interventiva e tornou-se uma espécie de “diplomata freelance” que viajava pelo mundo, muitas vezes ajudando a minimizar os impactos do extrativismo e da exploração levada a cabo pela política externa norte-americana, o que se o tornou uma figura muitíssimo inconveniente, levou a que fosse reconhecido pelo seu empenho sendo distinguido em 2002 com o Prémio Nobel da Paz.