Jimmy Carter. O líder que realmente quis drenar o pântano

1924-2024. O último Presidente norte-americano fiel aos seus valores.

Ninguém olha para Washington, capital do império, em busca de um perfil que provoque em nós não apenas assombro como admiração. Há muito que o poder deixou de inspirar veneração ou sequer outro sentimento a salvo da jocosidade que serve de tempero sempre que engolimos a sopa de fatalismos que nos organiza as ideias. Mas isto é um sinal do cinismo que, na verdade, nos governa. Contudo, destacam-se ainda esses perfis, vindos das fábulas ou do relevo mistificador dos relatos históricos, quando está a chegar ao fim a hora em que ainda vivem entre nós as raras figuras admiráveis que parecem reconhecer com Aristóteles que sempre será «mais belo governar homens livres». Morreu o único ex-Presidente norte-americano a cruzar a marca dos 100 anos, alguém que não se resignou a que a sua passagem pela Casa Branca fosse o momento decisivo da sua ação e influência, e isto depois de ser bloqueado e enxovalhado, não apenas pela oposição, mas pelo seu próprio partido. «A todos os jovens desta nação e a quem quer que procure saber o que significa viver uma vida com objetivos e significado – a boa vida — estudem Jimmy Carter, um homem de princípios, fé e humildade», afirmou Joe Biden a dias de também ele abandonar o mais alto cargo na administração, diminuído, derrotado, mas merecendo ser enaltecido também nesta hora por ter sido o primeiro senador democrata a apoiar a candidatura de Carter à presidência, em 1976.

Verdade, decência e compaixão

Quatro décadas antes de Trump, Carter foi o verdadeiro molde para o político antissistema, não uma contrafação para efeitos de propaganda, mas alguém que se batia pelos valores tradicionais e vivia segundo eles, e que prometeu drenar o pântano, depois dos escândalos de Watergate e da infame guerra no Vietname. Ele, sim, queria fazer dos EUA uma nação novamente digna e orgulhosa, prometendo não dizer uma só mentira ao eleitorado, e lutar pela igualdade social, sendo um caso isolado entre os líderes norte-americanos ao levar a efeito uma política externa voltada para a promoção da paz.

Carter emergiu de uma região agrária no sul segregacionista, tendo crescido numa casa sem eletricidade ou canalização, e chegou à Casa Branca da forma menos convencional possível, com a promessa de restaurar a fé dos EUA em si mesmo, depois de o país ter sofrido dois dos mais decisivos traumas na sua história recente, procurando criar uma fundação nova, com base nos princípios da verdade, decência e compaixão.

Drenar o pântano

Se muitos obituários insistiam que o seu mandato singular à frente da administração norte-americana foi um fracasso, e que Carter o fez esquecer na segunda metade da sua vida dedicando-se à promoção dos direitos humanos, a verdade é que em anos recentes o seu legado tem vindo a ser reapreciado como um dos mais consequentes, sobretudo quando comparado com o dos anteriores e subsequentes ocupantes da Casa Branca. É certo que ele viu a sua aprovação popular precipitar-se de uns 70% no início do mandato para uns meros 28 pontos pouco mais de um ano depois de ter tomado posse, e que foi repudiado não apenas pela oposição como pelos membros do Partido Democrata, tendo enfrentado uma crise doméstica a nível económico a par da instabilidade no plano internacional, que culminou com a crise dos reféns no Irão.

No fundo, Carter enfrentou uma tempestade perfeita desde que chegou ao cargo, não só pela crise energética provocada pelo embargo petrolífero árabe, como pela subida da inflação e das taxas de juro, sendo que ele nunca quis dourar a pílula, e manteve o seu compromisso de nunca mentir ao eleitorado. Carter, que morreu este domingo, no seu estado natal da Georgia, aos 100 anos, rasgou o habitual guião político, e em vez de se limitar a apagar fogos, fez frente às estruturas do poder em Washington, tendo sido o primeiro Presidente a assumir o compromisso de drenar o pântano, mas havia um mundo de diferença entre a sua postura e a de Donald Trump, pois a sua promessa não foi apenas um slogan, e prova disso mesmo foi a resistência que encontrou da parte do congresso, dominado pelo seu partido.

De facto, ele imaginou que poderia refundar a forma de fazer política, mas ao virar as costas aos interesses e às grandes figuras do aparelho, trazendo consigo para a capital um conjunto de conselheiros e assessores que o acompanhavam desde os tempos em que fora governador da Georgia, não demorou a sentir que todos se uniram para o tramar, e em vez de ser visto como uma figura que tentava enfrentar a hidra, tudo o que resultou foi um enredo de distrações, impasses e desilusão, que se foi adensando até ao derradeiro momento da sua presidência, com a libertação dos 52 norte-americanos mantidos reféns ao longo de 444 dias depois da invasão da embaixada do país em Teerão por parte de estudantes e militantes islâmicos.

À frente do seu tempo

Teriam de passar décadas para que ficasse claro como, apesar das dificuldades que enfrentou, Carter obteve alguns êxitos notáveis durante o seu mandato, particularmente além-fronteiras. Como assinalava o The New York Times, as suas políticas de direitos humanos estabeleceram um novo padrão para a forma como os EUA deveriam lidar com governos abusivos. «O tratado de paz que conseguiu estabelecer entre Israel e o Egito ainda se mantém em vigor décadas depois. Assinou um acordo de limitação de armas estratégicas com a União Soviética e formalizou relações diplomáticas com a China. E, apesar da oposição de conservadores como Ronald Reagan, fez aprovar os tratados que entregaram o Canal do Panamá ao Panamá». Um dos seus biógrafos, Jonathan Alter, em His Very Best: Jimmy Carter, a Life, defende que ele foi provavelmente o Presidente mais incompreendido da história americana, alguém que estava à frente do seu tempo em matéria de ambiente, política externa e relações raciais.

Jimmy Carter foi o último líder que permitiu ao povo norte-americano confrontar os seus demónios e repudiar a falta de escrúpulos perfeitamente corporizada por Nixon. Com as suas calças de ganga de agricultor vindo da pequena localidade de Plains, onde nascera a 1 de outubro de 1924, no seio de uma família de produtores de amendoins, Carter traçava o perfil oposto, o de um homem decente, que não se deslumbrou com o poder nem deu sinais de ser suscetível face à ganância que define a ação política nos nossos dias. Com um sorriso largo e franco, ele marcava um contraste flagrante com o típico arrivista que se sente atraído pelo poder. Nos corredores de Washington ele, sim, estava muito longe de casa, era um forasteiro que tinha chegado ali com a intenção de reformar o sistema num momento em que a população havia perdido a fé nas instituições governamentais.