Vício que é vício a sério, entranha-se. E não larga a vida da malta. Por isso, quando falei aqui há pouco, nestas pequenas eu-biografias, do Piteira, o craque que fumava cigarros pela piteira, fiquei fixado em escrever também sobre Antônio Machado de Oliveira, assim mesmo com acento circunflexo que faz do nosso António um António sem Baía da Guanabara, sem Cristo Rei e sem Redentor (‘qui lindo…’ segundo o João Gilberto), jogador com uma das alcunhas (para eles é apelido) mais bonitas de todos os tempos: ‘Pé de Valsa’. Só de imaginar mergulhamos na vida de uns poucos de Strauss e do Tchaikowski, Danúbio Azul, Rosas do Sul, Lago dos Cisnes e por aí fora. Mas Antônio de austríaco ou de polaco não tinha nada. Era um fanático do drible, da firula, viciado mesmo, pois então, de tal ordem que o nosso conhecido Bella Guttmann, quando o apanhou no São Paulo, em 1951, decidiu aplicar-lhe uma multa por cada drible que achava desnecessário. Oliveira, como lhe chamavam, podia ter ficado falido, logo ali, sem remédio, mas fintou até o húngaro que ganhou duas Taças dosCampeões com o Benfica. Não era um simples Oliveira, um daqueles Oliveiras que há pelo Brasil aos trambolhões, mais linda rama, menos linda rama, era o Pé de Valsa, e Pé de Valsa só cresce de uns duzentos em duzentos anos. Por falar em rama, foi no bairro de Ramos, na periferia do Rio de Janeiro, Zona da Leopoldina, no clube Unidos da Coroa, que Antônio começou a aplicar as suas maroteiras que desnorteavam os adversários, deixando-os mais fulos do que uma manada de bisontes avançando em tropel acirrados por apaches nas reservas do Colorado. Marcaram-no logo desde menino. Passou a ser vítima dos cotovelos alheios e dos pitons do inimigo. Ainda não era O Pé de Valsa mas não tardaria a sê-lo. Fazia que ia e não ia, e às vezes ia mesmo quando os defesas estavam à espera que não fosse. Compreendem? Se não compreende não faz mal porque ninguém entendia Pé de Valsa. Volta e meia era fantasmagórico e atravessava defesas inteiras na sua versão de ectoplasma. Os que o invejavam deram-lhe outra alcunha: Fominha. A versão brasileira do fução da nossa infância, essa palavra estranha que ganha grafias à medida que crescem cogumelos – foção e fossão – mas que o Dicionário Houaiss atribui à vertente futebolística, assim resvés Campo d’Ourique. O Unidos era clube amador. Mas o Bonsucesso pagou por ele. Bonsucesso era nome que prometia e Antônio cumpriu. E passou para o Fluminense. A coisa nas Laranjeiras era bem mais complicada. Não havia lugar para garotos e Pé de Valsa ainda era um garoto, com vinte e um anos mal feitos. No primeiro jogo no Maracanã não aguentou o peso de mais de cento e cinquenta mil espectadores. Tremeu como varas verdes. «Fiquei mal, bati castanholas com meus joelhos de tanto tremer». Depois entrou em campo e foi ele próprio, jogando na frente com Índio e Bigode.Há que reconhecer que uma linha avançada assim dá um certo sainete. Magricelas, com as costelas à mostra e os joelhos agudos do tempo em que morava noPlaneta Fome, como dizia ElzaSoares, tratou de azucrinar impiedosamente qualquer um que lhe aparecesse pela frente. Ainda por cima era um achado seja para que treinador fosse já que também alinhava a médio defensivo e até a central. A sua passada era larga como a de um casuar, as suas arrancadas devastadoras. E os dribles, os seus dribles (ou o seu vício, se preferirem) surpreendiam toda a gente, até talvez o próprio porque é assim que funcionam os que foram abençoados pelo Duende do Lorca. Depois de seis anos no Fluminense seguiu para São Paulo e jogou precisamente no São Paulo. Os dribles começaram a escassear porque Guttmann não estava para aí virado. E, no entanto, quando jovem, Guttmann foi bailarino. Como não abrir os olhos para não perder as danças do fogo de Antônio? Passou à reserva. O homem que jogava com os calções muito subidos, chegando quase ao abdómen, Pé de Valsa, nome único, apepinador de defesas, fazia questão de que ninguém lhe visse o umbigo.
Ninguém viu o umbigo do inevitável Pé de Valsa
Era tão viciado no drible que Bella Guttmann o multava por cada finta desnecessária