Escreveu François Rossel: «Uma gota de água é suficiente para que o sonhador – que a tem na mão – acredite que possui todo mar». Mas e se vivêssemos rodeados dele? A Madeira tem sido cada vez mais um dos destinos escolhidos, tanto por estrangeiros como por portugueses, para escapar da realidade rotineira do dia-a-dia, ou mesmo para viver. Há quem lhe chame «a pérola do Atlântico com encantos sem fim». Florestas densas e verdejantes, flores que – em uníssono – pintam um quadro de todas as cores, paisagens deslumbrantes, uma gastronomia rica de tudo aquilo que cresce nos campos, o famoso vinho da Madeira…
Os táxis – pintados de vermelho – são chamados de «abelhas», os autocarros são os «horários». Quando está nevoeiro, dizem que «está capacete» e há uma oferta sem fim de diferentes frutas, como por exemplo, a banana maracujá. Um lugar onde podemos respirar aquilo que somos, onde nos podemos redescobrir, explorar e encantar pelo azul do oceano. A LUZ foi numa viagem de quatro dias com a Associação de Promoção da Madeira para conhecer alguns recantos da ilha onde o silêncio apenas é interrompido pelo cantar dos pássaros ou pelo barulho da dança do mar. O objetivo? Conhecer algumas das mais famosas quintas de enoturismo da ilha enquanto exploramos a sua gastronomia.
A Boneca de Canudo
O dia amanhece já no aeroporto. O voo é às 8h30, mas devido ao vento, existe sempre a dúvida se conseguiremos ou não aterrar no aeroporto internacional da Madeira. Felizmente, correu tudo como esperado. Aliás, chegámos mais cedo do que o programado. Está sol e o céu promete um dia de calor. Depois de tirarmos a fotografia da «praxe» ao lado do busto de Cristiano Ronaldo, dirigimo-nos para a carrinha que nos espera no estacionamento.
A primeira paragem leva-nos à Quinta da Boneca de Canudo. Elsa Franco é a responsável pelo projeto que fez nascer este vinho que é produzido pela Casa do Caramanchão na encosta magnífica do vale de Machico numa área de terreno de aproximadamente de três hectares, terrenos que se encontram na família há mais de 200 anos.
Elsa acabou por deixar a Madeira para estudar no Continente. Mas ao regressar de Lisboa, já com o «canudo» em Engenharia Civil na mão, encontrou as terras do pai Juvenal Franco – que só fazia vinho seco – praticamente abandonadas.
«Nós tínhamos uns terrenos na família e houve uma altura em que decidimos – o meu pai também já tinha alguma idade – que devíamos fazer a reconversão das vinhas. Isto em 2006. Retirámos tudo e fizemos novas plantações. Ele foi acompanhando o processo, mas não achava muita piada. O que ele gostava mesmo era de vinho seco e não de vinhos tranquilos», explica. «Acabámos por dar continuidade ao projeto. O vinho acaba por ser a base familiar. Podia ter sido outra cultura, mas achámos que o vinho é algo que reúne a família toda à volta do projeto», afirma. «O vinho Madeira é algo que já está bem definido. Os vinhos tranquilos, são sempre algo muito desafiante. Estamos a reinventar-nos todos os dias, queríamos fazer algo muito diferenciador», acrescenta. Elsa começou por apostar na produção de um vinho tranquilo e depois reformulou a vinha e plantou novas castas (Touriga Nacional, Syrah e Merlot) que deram origem ao vinho tinto DOP Madeirense (Boneca de Canudo). Em 2022, estreou nos vinhos brancos, com um Caracol da ilha dourada e um Verdelho da Ponta do Sol. «Como temos aqui muitas maçãs, também fazemos cidra há três anos. Temos uma variedade imensa», acrescenta.
Segundo Elsa, o nome do projeto resultou de um episódio engraçado que ocorreu ao querer assumir as rédeas do negócio de família. «Na Madeira há sempre uma disputa pelas áreas de terreno… E foi o que aconteceu com um familiar. Quando regressei de Lisboa quis fazer a reconversão dos terrenos e ele não ficou muito contente. ‘Só faltava aquela boneca de canudo!’, dizia na altura às pessoas… O desabafo foi tão conhecido e comentado que ficou esse o nome», conta. Na zona de Machico, Elsa sonha começar um novo projeto de Enoturismo: quer transformar uma casa da família para poder partilhar ainda mais a sua paixão.
Seguimos para a Camacha, rumo ao restaurante Adega do Pomar. Na porta, uma tabuleta de madeira diz-nos que chegámos à «taberna». O amarelo das paredes contrasta com o escuro das pedras que decoram o restaurante. Do lado de dentro, dominam as madeiras e alguns objetos tradicionais madeirenses que se encontram espalhados pelo espaço. Pedimos a sopa de tomate madeirense, a sopa de trigo, milho frito e espetada de vaca para conhecer. Para acompanhar, uma sidra. A Madeira não nos podia receber melhor…
Quinta de Santa Luzia/ Quinta das Malvas
A tarde começa na Quinta de Santa Luzia, uma quinta agrícola tradicional ainda em funcionamento que pertence à família vinícola Blandy há sete gerações sucessivas – a casa original foi comprada por John Blandy – que se estabeleceu na ilha da Madeira em 1811 –, em 1826, para dedicar-se ao comércio e exportação do vinho da Madeira. Somos recebidos por uma mesa com uma toalha floral onde estão dispostos bolos de mel, alguns queijos e, claro, vinhos. A uma altitude de 134 metros, temos uma vista panorâmica sobre a cidade e a baía do Funchal.
«Estou a trabalhar para a Madeira Wine Company há dois anos. Entrei na empresa para gerir a parte do enoturismo rural. Temos as nossas adegas no centro do Funchal e esse é o nosso antigo estabelecimento. Mas quisemos apostar nas experiências das vinhas. Temos três terrenos arrendados onde temos as nossas vinhas, num total de mais ou menos sete hectares», começa por contar Emily Blandy. «Mas aqui, nesta quinta, temos menos de um, quase a aumentar. O meu primo é o proprietário e foi ele que plantou as vinhas há quase 20 anos. Na altura, queria concentrar-se nas vinhas mais raras. Ele tem a sua equipa que faz trabalho agrícola. Mas uns tempos depois, pediu para a Madeira Wine Company tomar conta. Temos castas de Boal e Verdelho, foram as que mais se adaptaram aqui ao Funchal. Temos também dois pequenos pedaços de terrantez que é o mais raro e chato a cultivar», detalha Emily que nasceu na Madeira, mas que passou mais de metade da sua vida noutros cantos do mundo, sobretudo em França. «Fui criadora de animais, onde estive a trabalhar mais de 18 anos. Depois voltei para cá. Queria estar mais perto da família e queria seguir o legado», conta. «Estou a aprender muita coisa, sobretudo sobre vinhos», acrescenta.
A casa principal com os seus jardins e que pode acomodar até 17 pessoas, tem acesso direto à estrada. Possui uma piscina, mesa de snooker, piano, matraquilhos e campo de ténis. Existe também uma sala belíssima para conferências e retiros de yoga/meditação.
Já a Quinta das Malvas – uma quinta dentro da quinta –, foi renovada em 2004. A casa com um ambiente refinado tem seis quartos, cada um deles com o nome de uma das ervas aromáticas que cresce na Quinta.
H.M.Borges
Terminamos a tarde com uma visita à H.M.Borges, fundada em 1877 por Henrique Menezes Borges, que dedicou toda a sua vida à procura de uma seleção de vinhos produzidos na Ilha da Madeira, com o intuito de proceder ao seu envelhecimento. «Ele iniciou como sendo um grossista. Comprava um vinho, envelhecia-o e depois revendia», conta Melissa Castro, Sales And Marketing Specialist do espaço. Mais tarde, quis expandir-se e começar a produzir o seu próprio vinho. Segundo uma das suas atuais proprietárias, Helena Borges, o seu bisavó era um «visionário». Inicialmente a H.M. Borges não se encontrava no atual prédio, era sediada mais no centro do Funchal, perto do icónico Mercado dos Lavradores. «Não havia espaço e, por isso, em 1924 mudámo-nos para aqui», detalha Melissa. O edifício atual era uma moagem de cereais. «Atualmente, estamos na quarta geração. São as primas Isabel e Helena Borges as responsáveis», completa.
A entrada é convidativa. Um portão vermelho com um teto adornado com folhas que imitam vinhas penduradas. Tanto a mesa como as cadeiras lembram barris. Do lado de dentro dominam as madeiras. «Era tudo feito à mão, com pisa uva também. Vemos os borracheiros neste vídeo. No passado, os lagares estavam próximos às vinhas, então tínhamos de pisar as uvas e, estes senhores, transportavam o vinho», afirma enquanto passa um vídeo sobre a história da empresa.
Recorde-se que o «borracho» resulta do aproveitamento da pele de cabra que se adapta a «contentor de líquidos». Os «borrachos», ou «odres» – como são também conhecidos –, assumiram um papel importante na circulação interna do «mosto», sendo utilizados, tradicionalmente, para transportar o sumo da uva pisada no lagar até as lojas onde se encontravam as pipas, para armazenamento.
«Antigamente as exportações eram feitas de barco, até porque foi nos barcos que o vinho Madeira se iniciou. Um feliz acaso!», lembra a guia. «Nas viagens de ida e volta para zonas mais quentes, como a Índia, havia vinho que não era consumido. Quando regressaram, viram que este tinha melhorado as suas propriedades e aromas. Isto porque era adicionado álcool para que ele durasse mais e não fosse transformado em vinagre. Então pensou-se que ele melhorava por duas razões: o movimento do barco e o calor», conta. «Ele passava quase seis vezes pelos trópicos. Foi assim que ficou conhecido o vinho ‘da roda’. Porque ele ia até à Índia e regressava», continua. No entanto, havia muito desperdício. Mais tarde, percebeu-se que bastava colocá-lo num sítio quente.
Num dos cantos da sala, vemos uma secretária com alguns artigos de jornais abertos sobre o negócio da família. Na parede, alguns documentos emoldurados. «É o nosso espólio. Temos aqui uma carta de Winston Churchill que visitou a Madeira em 1950, por exemplo. Durante a sua estadia foram-lhe oferecidos alguns vinhos e esta é uma carta de agradecimento. Além disso, temos várias obras de Max Römer, um artista que veio viver para a Madeira em 1922 com a sua família. Durante a sua vida pintou muitas coisas sobre a ilha e era fascinado pelas vivências do dia-a-dia», revela ainda. Numa grande parede, um desenho em cores pastel sobre as vindimas salta à vista. Foi pintado em 1933 e demonstra fielmente as técnicas do pintor.
Dentro da adega, podemos conhecer as cubas de armazenamento. «Temos oito que possuem entre 25 e 26 mil litros cada uma», diz Melissa. «O vinho que está aqui dentro está pronto a ser engarrafado. A primeira começou a ser construída em 1924», acrescenta. «Nós não temos vinhos próprios. Todas as uvas são compradas a agricultores e a mais produzida é a casta Tinta Negra. Aqui na Madeira 85% de todos os vinhos Madeira são produzidos por esta casta», detalha. Os clientes podem fazer a visita guiada e a prova de vinhos: existem visitas Silver (com direito a prova de dois estilos diferentes de vinhos), a Gold (três vinhos de excelência) ou a Diamond (seis vinhos de excelência).
Depois de uma pausa no The Vine Hotel – local onde vamos ficar hospedados durante esta viagem –, o jantar acontece no restaurante Kampo, do chef Júlio Pereira. O menu escolhido foi Tártaro de novilho e cogumelos para entrada e um Arroz negro com polvo e camarão para prato principal.
Antes de regressar ao hotel, damos uma volta pela marina do Funchal. Está um cruzeiro atracado. Veem-se luzes de todas as cores que nos trazem um pequeno vislumbre da animação que deve estar a ser vivida a bordo. No entanto, ao virarmo-nos de costas para o mar uma outra onda de luzes ilumina a noite. Ao fundo, as marcas reluzentes das casas, das estradas, das igrejas.
A Quinta das Vinhas
Começa um novo dia e já estamos a caminho da próxima quinta, desta vez no Estreito da Calheta. A Quinta das Vinhas nasceu do desejo de preservar o património familiar e de proporcionar a possibilidade das pessoas ficarem numa quinta madeirense. Em 1997, ficou concluída a restauração da casa-mãe. Mais tarde, foi restaurada mais uma casa e o edifício no topo da vinha foi convertido num restaurante onde os visitantes podem provar uma vasta seleção de vinhos de mesa produzidos na ilha, enquanto apreciam a vista sobre a vinha até o mar.
Durante muitos anos o terreno foi arrendado ao Instituto do Vinho da Madeira para uma vinha experimental. Atualmente, a vinha a que a equipa chama de «biblioteca viva», possui mais de 70 castas diferentes, tanto para vinificação quanto para comer.
Segundo Isabel Freitas, responsável pela produção das vinhas, a quinta foi construída em 1685 e pertence à mesma família desde sempre. Ao longo destes anos teve várias funções e culturas, mas no fim dos anos 80, a família Welsh, que atualmente a gere, decidiu converter para alojamento e vinho. Antes disso tinha alugado todas as terras ao Instituto Vinho Madeira. Virou um campo experimental de vinhas porque o Governo queria perceber como é que as diferentes variedades com que se fazem vinho Madeira estariam adaptadas às diferentes regiões da ilha. «Eram três campos experimentais. Este era o do sul da ilha. Em 2018 as coisas mudaram. Foi a partir dessa altura que a Quinta das Vinhas passou a gerir a vinha e tem vindo a converter a mesma em biológica seguindo os princípios da biodinâmica», afirma. «Obtivemos a nossa 1º certificação em 2021», recorda.
A quinta neste momento tem capacidade para 50 pessoas. «Tem a casa-mãe que tem seis quartos. E aquelas casinhas lá em baixo onde se vê a piscina. São 14 casas e mais estas duas que estão dentro da propriedade», aponta. Na casa-mãe, o estilo madeirense e americano misturam-se. Há um jardim particular e as decorações são minimalistas, mas bastante rústicas.
Socalco Nature Calheta
E quando achamos que a Madeira não nos pode surpreender mais, chegamos ao Socalco Nature Calheta. Antes disso, lá de cima, perto do Centro das Artes Casa das Mudas/ Museu de Arte Contemporânea da Madeira, que abriu ao público no dia 8 de outubro de 2015, já se viam os pequenos blocos de pedra com grandes janelas em vidro seguidos por um hectare de vinha e outras culturas.
Um lugar que mistura turismo rural, atelier gastronómico e farming numa única experiência. «Somos um agroturismo e estamos abertos há sensivelmente quatro anos. Somos o Socalco porque, como vemos, é tudo construído em socalcos. Temos aqui a casa-mãe do século XVI. Estava impecável dada a exposição ao sol. Antes era uma casa de agricultores e um boticário – fazia plantas medicinais. Estes socalcos já existiam. O projeto de arquitetura veio abraçar o que cá estava», conta Nélia Freitas, a diretora do espaço que é composto por 20 unidades, todas elas com janelas em vidro viradas para o oceano. «Temos aqui uma cozinha de experiência. Além do restaurante que temos aqui em baixo, o cliente pode optar por ter uma experiência na suíte com chef privado», continua. Existe uma piscina que se assemelha a um tanque. «A ideia é sentarmo-nos a beber um copo», explica.
Entre as vinhas, que neste momento estão a descansar, a equipa planta vários legumes. «Temos de tudo! E tudo o que é plantado é utilizado no nosso restaurante. Por isso, o restaurante não tem menu. A experiência do dia começa com a colheita da horta. O que nos falta compramos localmente. Temos zero desperdício! Além de garantirmos a frescura dos produtos. O pão também é feito por nós, com fermentação natural», garante a responsável.
Passamos depois para um grande almoço com menu de degustação e prova de vinhos no restaurante. Carpaccio de Vieira com creme de abacate, pó de pimenta rosa, coentros e brincos de noiva; Brás de camarão, semilha (nome dado à batata), azeitonas desidratadas, rúcula do jardim, azeite, manjericão e cebola caramelizada; Atum amarelo, com puré grão de bico, cebola caramelizada, tomate cherry levado ao forno e flor de agrião; Polenta milho, com acelgas e tomate, pargo da costa, compota de cebola e azeite; Mendinha (costela) estufada a baixa temperatura, com puré de semilha batata, feijão verde varginha e redução da mendinha com a gordura e, para terminar, um Crumble de banana, farinha de trigo e aveia, gelado de maracujá e menta.
Demorámos mais tempo do que o esperado, não fosse este um lugar tão especial. Fazemos uma breve paragem na Vinhos Barbeito, empresa fundada em 1946 por Mário Barbeito de Vasconcelos, e seguimos para o hotel.
Um jantar com vista sobre a ilha
O jantar desta noite será no Nini Design Centre, a mesma artista que pensou o hotel onde estamos hospedados.
Ficamos numa sala à parte com uma vista desafogada sobre a ilha e os barcos. Os pratos escolhidos foram: Creme de couve-flor, com romanesco e ras el hanout e crocante de amendoim e Filete Black Angus, com pak choi glaceada, puré de abóbora e noz, batata Fondant e molho Vinho Madeira.
O branco e o preto dominam o restaurante. Quem se sentar no lado do sofá quase se afoga nas enormes almofadas que o decoram. Vemos o Pestana Hotel, o famoso Savoy e o controverso Principado da Pontinha. Recorde-se que o proprietário do ilhéu, um professor de arte chamado Renato Barros, comprou-o a uma rica família britânica em 2000. Alegou que o Rei D. Carlos I tinha dado à família a propriedade e a soberania do ilhéu numa carta régia de 1903. Em 2007, Barros proclamou a sua independência de Portugal. Chegou mesmo a assumir o título de príncipe Renato II da Pontinha.
Paragens ‘obrigatórias’ na ilha
No terceiro dia saímos do hotel mais cedo. O objetivo é ir parando durante as viagens para tirar fotografias e conhecer outros lugares que não estavam no plano.
Paramos primeiro na Baía de Machico (primeira capital da Madeira) com vista para o Caniçal. Depois – uma das paragens obrigatórias quando se vem à ilha –, Santana, onde tiramos algumas fotografias nas suas casas típicas conhecidas pelas suas cores vivas: azul, branco e vermelho. Segundo o site Visit Madeira, estas casas de formato triangular são feitas de madeira, «um material barato e abundante neste local, que ajuda a equilibrar a temperatura no interior». A famosa cobertura de colmo era uma outra forma de aproveitar o cultivo de cereais, como o trigo e o centeio. «A inclinação dos telhados garantia a impermeabilidade da habitação, permitindo a drenagem da água da chuva. Por sua vez, o interior contava somente com um sótão, para reservar os produtos agrícolas, e um piso térreo para a área residencial, dividida em cozinha e quarto», descreve.
Outra breve paragem na Quinta do Furão, uma propriedade integrada no topo de uma falésia. Por já estarmos na Costa Norte da ilha, a temperatura muda. O lugar demonstra-nos como a natureza é grandiosa e forte.
Terrabona Nature & Vineyards
Subimos depois por estradas estreitas que, apesar de meterem «respeito» para quem não está habituado, nos espantam pela sua imensidão, não estivéssemos nós no meio da Laurissilva. É o cenário ideal para filmar O Mundo Jurássico, existe há cerca de 20 milhões de anos e é considerada «uma Relíquia do Terciário albergando seres vivos que existem desde esse Período e outros que evoluíram desde então até aos nossos dias».
Chegamos à Terrabona Nature & Vineyards que, segundo a proprietária, Maria João Velosa, oferece um novo conceito de Enoturismo, ligado à natureza. Estamos na Boaventura, no concelho de São Vicente, na costa Norte da Madeira. Não se ouve um único barulho. A paisagem é estonteante, forrada com um verde denso – foi também isso que apaixonou Maria João e o seu marido Marco Noronha Jardim, ambos ex-banqueiros.
O espaço – que foi comprado pelo casal em 2014 –, é sinónimo de privacidade. Tirando uma villa de tipologia T2 (que se encontra logo na entrada) nenhuma das outras – T1 – é visível da parte exterior. As casas estão encaixadas nos socalcos e cada uma delas está num patamar diferente. Não são permitidas crianças nem animais. Segundo a proprietária, o espaço recebe sobretudo alemães, franceses, canadianos, americanos e pessoas vindas da Arábia Saudita. Maria João confidencia que já recebeu um vizinho do Cristiano Ronaldo. Há muitos poucos portugueses.
«Comprámos o terreno para um projeto turístico. As vinhas já estavam cá. Temos um terreno com, mais ou menos, sete mil metros quadrados. Temos plantados quase quatro mil metros de vinha», conta. Três anos depois de estarem a explorar o terreno, nasceram os vinhos da gama Family Harvest com fermentação e estágio em cuba de aço inox. Mais recentemente, a gama Heritage: um com fermentação e estágio em barrica de carvalho francês e um último com estágio em barrica de terracota.
O Terra Bona Family Harvest conseguiu uma avaliação de 90 pontos na Wine Advocate, a revista de Robert Parker, o famoso crítico norte-americano. Além disso, foi premiado com medalhas de bronze em dois dos concursos de vinhos mais prestigiados, o IWC e o Decanter, em Londres.
Sentados num dos pufes beges virados para a floresta é normal que qualquer pessoa pense que «a vida é mesmo bela». Para os clientes existem dois jantares semanais: à quarta-feira e domingo. São os proprietários a cozinhar. Os clientes também podem requisitar um chef de fora. Segunda-feira existe uma sessão de Yoga. «Colocamos uma refeição vegetariana na villa com sumo de frutas naturais. Temos compota, manteiga de amendoim, chocolate, café, ovos comprados das ‘galinhas felizes’, tomates, mirtilos, pão quente de fermentação natural… Cada um toma o pequeno-almoço no seu espaço. Fruta regional, bolo caseiro… Não queremos parcerias, queremos dar um serviço personalizado», assegura Maria João. «O vinho é uma fatia do nosso bolo. Não nos intitulamos produtores de vinho. Produzimos coisas pequenas. Não fazemos provas de vinhos, proporcionamos momentos. Este é o nosso pequeno paraíso, o nosso pequeno sonho», admite.
Quinta do Barbusano
A viagem segue até à Quinta do Barbusano. Vemo-la ao longe. Ainda estamos na carrinha e parece que nos dirigimos até «ao final do mundo» pela pequenez do restaurante vista daqui. Estamos a cerca de 450 metros de altitude. O projeto do senhor António Oliveira nasceu em 2016. Neste momento, possui, neste terreno, 12 hectares de vinha com vista para a Capela de Nossa Senhora de Fátima. No restaurante – todo em vidro –, a especialidade é a espetada típica madeirense, confecionada com carne de vaca tenra, louro, sal, alho, colocada no pau de loureiro a assar. Passamos aqui toda a tarde entre conversas e provas de vinho. A satisfação do proprietário é nítida. Este investiu passo a passo na aquisição de pequenas parcelas de terreno onde se dedicou à plantação da casta Verdelho e Tinta Negra, iniciando assim a produção de vinhos de mesa: tintos, brancos e rosés.
Já anoiteceu. Fazemos outra breve paragem, desta vez, na Taberna da Poncha, Serra d’Água, uma das mais afamadas da Ilha da Madeira entre os turistas. As paredes do estabelecimento estão forradas com notas, fotografias, cartões de visita, documentos pessoais já caducados, papéis com mensagens escritas, entre muitas outras coisas. É um lugar com história onde turistas se misturam com locais. Há cascas de amendoim espalhadas pelo chão. Optamos pela versão regional feita na hora para uma garrafa que servirá os próximos clientes e mexida com o «caralhinho» (ou mexelote) mesmo à nossa frente.
Audax: comida madeirense progressiva
O jantar desta noite leva-nos ao restaurante Audax, na Rua Imperatriz Dona Amélia. O espaço é decorado com pretos e dourados. Atrás do balcão comprido com vista para a sala intimista, encontra-se o jovem chef César Vieira e a sua equipa. «Somos um restaurante de comida madeirense progressiva», começa por afirmar Diogo Freitas, filho da proprietária Marisa Freitas. O restaurante só abriu para nós. «O nosso objetivo é muito claro: elevar a tradição gastronomia da nossa região. Nesse sentido, o nosso foco passa por uma pesquisa muito específica de tudo aquilo que é a nossa cultura», explica.
Presenteiam-nos com um menu de degustação de seis momentos – o Audax Experience –, muito focada no peixe. «Somos muito focados no mar que temos… As lapas, a espada, a cavala… A ideia do menu é pegar em sabores que trago de casa. Não há mais madeirense que isso. Depois damos-lhe uma roupagem diferente», conta o chef. Para acompanhar, trazem-nos uma harmonização de vinhos exclusivamente vinho Madeira.
Regressamos ao hotel a pé. Há música em cada bar pelo qual passamos, não fosse esta uma das zonas mais cosmopolita e animada da ilha.
A história da Blandy’s
O último dia começa às nove horas. Estamos na Madeira Wine Company. Recorde-se que a família Blandy distingue-se por ser a única família, de todos os fundadores originais do comércio do Vinho Madeira, que ainda possui e gere a sua própria empresa vitivinícola original. «Estamos num edifício antigo. Parte dele era já no século XVII um mosteiro, o Mosteiro de São Francisco. Foi comprado pela família Blandy no início do século XIX», afirma Rita, a nossa carismática guia. John Blandy, o fundador da Blandy’s, chegou à Madeira em 1808 e fundou, três anos depois, o seu próprio negócio como expedidor de vinho e comerciante geral, com os seus irmãos, Thomas e George. «Atualmente é liderada por Chris Blandy, membro da 7º geração da família», lembra enquanto passamos um «túnel» de madeira que, no passado, foi utilizado para vinho. «Tem uma capacidade de nove mil litros e tem mais de 140 anos. É interessante porque mantivemos o aspeto visual e olfativo», explica. Rita prossegue a visita aprofundando tudo o que tem a ver com a plantação e condução, as castas utilizadas, as quintas da família, a produção, o envelhecimento, o canteiro e a estufagem. Passamos também pelo museu que conta a história da família e acabamos com uma prova de vinhos.
O final da manhã é passado a caminhar pelo Funchal: entramos na Sé Catedral, na Igreja do Colégio, na Fábrica de Santo António, na Fábrica dos bordados, na Zona Velha e no Mercado dos Lavradores. As ruas estão cheias de grupos de turistas, os cafés estão repletos de pessoas, as lojas abertas, vendedores de rua espalhados por toda a parte. Saltam à vista os que vendem fruta, num cenário colorido e alegre. Almoçamos no AKUA, do qual o chef Júlio Pereira – que detém também o Kampo –, é proprietário.
Regressamos a Lisboa com o paladar mais rico e treinado, com imagens deslumbrantes na mente e com uma coleção de lugares onde regressar. Tal como escreveu o poeta Rama Lyon: «Tantos jardins percorri/À volta da terra inteira,/Mas o mais lindo que eu vi/ Foi a Ilha da Madeira».