Amnistia. Américo Aguiar: um cardeal em pista própria

A proposta de Américo Aguiar de uma amnistia alargada para os reclusos em 2025, foi uma iniciativa pessoal e apanhou de surpresa os seus pares na Igreja Católica. Fontes da Conferência Episcopal afirmaram ao Nascer do SOL que o assunto nem sequer foi discutido pelos bispos. Américo Aguiar diz que agiu como bispo de Setúbal…

Amnistia. Américo Aguiar: um cardeal em pista própria

A proposta de Américo Aguiar de uma amnistia alargada para os reclusos em 2025, foi uma iniciativa pessoal e apanhou de surpresa os seus pares na Igreja Católica. Fontes da Conferência Episcopal afirmaram ao Nascer do SOL que o assunto nem sequer foi discutido pelos bispos. Américo Aguiar diz que agiu como bispo de Setúbal e cardeal.

A proposta do cardeal e bispo de Setúbal Américo Aguiar de uma amnistia alargada para os reclusos em 2025, ano de Jubileu para os católicos, foi uma iniciativa pessoal e apanhou de surpresa os seus pares na Igreja Católica. Fontes da Conferência Episcopal afirmaram ao Nascer do SOL que o assunto nem sequer foi levado para conhecimento e muito menos discutido pelos bispos, fazendo questão de salientar que Américo Aguiar agiu por conta própria e que aquela não é uma proposta da Igreja portuguesa. O nosso jornal sabe que também o Patriarcado de Lisboa foi apanhado de surpresa e que discorda da proposta de Aguiar.


«Foi uma decisão dele e não como representante da Igreja. Como bispo, tem legitimidade e é livre de o fazer, pois não temos de andar todos em procissão. Mas a proposta não é em nome da Igreja Católica. Nem sequer falou com a Conferência Episcopal», explicita um bispo. «Nós temos locais próprios para estas tomadas de decisão. Apesar do assunto da amnistia estar no âmbito das nossas atenções temos de esperar pelos locais próprios para falar nisso. Geralmente, estes temas são discutidos por proposta da conferência no conselho permanente. A Conferência até pode ainda vir a propor isso, mas será a partir do conselho permanente e ainda não tivemos nenhum este ano. Ainda estamos no sínodo e a tentar que o sínodo não ‘morra’. Pode vir ainda a haver uma proposta da conferência, mas há outros assuntos que estão em agenda e tem de ser visto tudo em conjunto. Ainda não refletimos essa questão que é uma decisão coletiva», acrescenta.


«A Igreja, todos nós, devemos de estar de acordo com a amnistia, outra coisa é saber se este é o momento oportuno para isso. Está bem que isto vem na sequência da bula de proclamação do ano do Jubilar do Papa Francisco, mas nem ele adiantou muito sobre o assunto. Estas coisas têm de ser analisadas conforme a oportunidade em cada país e depois ver como se pode fazer», comenta outro bispo, admitindo que o facto de Américo Aguiar não ter falado com ninguém antes causou algum mal-estar: «Corre em pista própria, o que não é novidade…».

A defesa de Américo Aguiar
Ao Nascer do SOL, Américo Aguiar defende o seu ponto de vista e por que agiu desta forma: «Não apresentei a proposta em nome pessoal, nem em nome dos bispos. Fiz isto como bispo de Setúbal e cardeal da Igreja. A bula do Papa para o ano santo diz que cada pastor materialize, faça chegar, concretize, exorte e desafie – e eu fiz a minha parte». Questionado se o assunto não devera ter sido discutido na Conferência Episcopal, o cardeal afirma: «Concordo que sim, mas, naquilo que tem sido o meu trabalho, não equacionei. Aliás, todos os bispos de Portugal abriram o ano santo, no dia 29 de dezembro, e alguns falaram do assunto nas suas homilias. Outros não falaram. Se calhar, muitos não têm a realidade prisional nas suas dioceses. E eu tenho Setúbal e Montijo».


No início desta semana, Américo Aguiar foi à Assembleia da República entregar uma carta com o pedido de uma amnistia alargada para os reclusos semelhante ao apelo feito pelo Papa Francisco a propósito do Jubileu de 2025, mas sugerindo algumas regras, nomeadamente a exclusão de crimes muito graves. A ser aprovada pelo Parlamento, afirma na carta, uma futura lei de amnistia deve deixar «salvaguardados os direitos das vítimas» e prever que a redução de pena «seja revogada se a pessoa que dela beneficia cometer infrações dolosas durante determinado período».

Não faz sentido
«Depois da experiência pouco conseguida da amnistia decretada por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude, isto não é uma coisa que a meu ver faça sentido insistir. E, com a controvérsia que já gerou com alguns partidos, acabou por nem ajudar muito aos objetivos pretendidos. Uma coisa é a amnistia como quando o Papa veio cá, isso é normal, faz parte do processo. Outra é a iniciativa de um único bispo que ainda por cima decide ir à Assembleia da República sabendo que a questão não é pacífica…», critica um dos bispos contactados pelo Nascer do SOL.


«Não concordo nada que as amnistias se realizem apenas com a vinda do Papa. Eu estive envolvido na questão da amnistia a propósito das JMJ e há aquela questão que ainda está em curso, da avaliação da constitucionalidade relacionada com o limite da idade – e que, infelizmente, manchou o processo, pois o que se queria que fosse uma coisa positiva acabou por ter umas nuances cinzentas em relação a reclusos que se sentiram excluídos», contrapõe Américo Aguiar, explicando ainda: «Quando saiu a bula, no contexto do ano jubilar, eu e muitos de nós sabemos que se associa ao jubileu o perdão das dívidas, o perdão das penas. Uma amnistia é a possibilidade de voltarmos ao zero, de recomeçarmos a vida, é esse o sentido. E quando, no âmbito da bula, o Papa desafia os pastores a materializarem-na na sua realidade, na sua jurisdição, e a fazerem eco dela, eu não tive qualquer dúvida que tinha obrigação moral e institucional de o fazer. E fiz enquanto bispo, não está em lado nenhum que tenha sido de outra maneira».
O cardeal ressalva ainda que «nós não temos Igreja católica portuguesa, nós temos Igreja Católica em Portugal, com 21 bispos de 21 dioceses, que fazem um esforço permanente de sincronização». Na sua opinião, a questão central agora é outra, nomeadamente, «se é oportuno os senhores deputados tomarem uma decisão neste sentido». «Os contextos e os ruídos não são o importante, mas já sei que vamos outra vez encarreirar por aí. O que é que se há de fazer? Da Igreja, até hoje, não vi qualquer reação».


Até agora, a proposta foi recebida com pouco entusiasmo no Parlamento: Chega, IL e PAN manifestaram-se contra, PS e PSD não reagiram ainda e apenas o BE disse que está a pensar apresentar uma proposta. «Eu compreendo que este timing é o pior de todos. É o timing da insegurança, do Martim Moniz, etc.», afirma Américo Aguiar, contrapondo: «Mas o calendário santo é este. Também, sejamos honestos: o Parlamento tem lá há já meio ano para apreciação uma petição da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso e da Associação Vicentina de Apoio ao Recluso. Está à espera de agendamento para reflexão. Não há razão alguma para qualquer tipo de ruído ou polémica. Estamos num Estado de Direito, os cidadãos são livres de fazer propostas e o Parlamento é livre de acolher ou não. Eu não desisto».

Na cama com a esquerda
A confusão da qualidade em que o cardeal Américo Aguiar fez o pedido de amnistia, contribuiu para leituras diversas. Para André Ventura, «o cardeal Américo Aguiar foi ao Parlamento encontrar-se com o presidente da Assembleia da República. Ele foi ali como representante da Igreja portuguesa entregar um pedido de amnistia, devido ao Jubileu da Igreja Católica e dos 50 anos do 25 de Abril. Um cardeal foi à AR entregar um pedido de perdão para os presos, ou seja, para pôr mais presos na rua, e diz que foi em nome do cristianismo e do humanismo. Está tudo errado, e o cardeal é hoje uma das figuras mais emblemáticas da Igreja portuguesa. O que acha a Igreja que ganha com isso? Américo Aguiar esteve no congresso do PCP, anda a pedir amnistias para presos, é tudo o que a Igreja não devia defender. Depois não venham dizer que o Chega está a afastar-se da Igreja. Não, os cristãos estão a afastar-se desta Igreja. E depois admiram-se que cresçam estas igrejas evangélicas à volta. Porque são mais firmes no pensamento. Mais firmes na ação, e não estão na cama com a esquerda, e com estes partidos todos».


No meio judicial, a proposta de uma amnistia também não está a ser bem acolhida. Contactado pelo Nascer do SOL, João Cura Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, reconhece as boas intenções do cardeal, mas alerta para as consequências: «As denominadas leis de amnistia, enquanto atos de clemência em que se esquecem crimes e se perdoam penas, devem ocorrer excecionalmente, sob pena de, ao vulgarizarem-se, contribuírem para um sentimento geral de impunidade criminal». Ora, acrescenta, «tendo sido aprovada recentemente, a propósito da visita do Papa Francisco a Portugal, uma lei que amnistiou infrações criminais e disciplinares e perdoou penas e sanções, a aprovação de uma nova lei de amnistia, um ano e alguns meses volvidos, teria esse efeito negativo. Daí que, apesar da bondade das razões que possam ser invocadas, é desaconselhável pensar-se sequer na aprovação de uma nova lei da amnistia».


O juiz Manuel Soares, ex-presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, também reagiu, num post no seu Instagram, muito crítico, em que considera não ser «legítimo que um cardeal da Igreja Católica se apresente como promotor de uma proposta dessas ao Parlamento – nem mesmo tratando-se do irrequieto Américo Aguiar, que, já se viu, tem uma agenda pessoal que não cabe nas quatro paredes da igreja». Para o magistrado, apenas a Assembleia da República tem competência nestas matérias, sendo «duvidoso que um Estado laico deva conceder amnistias e perdões de penas por razões ligadas a eventos religiosos».