Jean-Marie Le Pen faleceu, na terça-feira, aos 96 anos. O líder icónico da direita populista francesa passou os seus últimos momentos num centro de cuidados na comuna de Garches, em Hauts-de-Seine, um subúrbio de Paris. Le Pen encontrava-se sob vigilância médica após complicações cardiovasculares sofridas no final do ano passado.
Um nome envolto em polémica, tanto em virtude da sua ação política quanto da sua conduta nem sempre recomendável, deixou este mundo a apenas quatro anos de completar o seu centenário. Mas partiu apenas numa dimensão física, com as suas ideias a ecoarem, com cada vez mais intensidade, no panorama político europeu e francês, à medida que novos (e velhos) desafios se acumulam num período de instabilidade na V República. O seu legado continua também através da filha, Marine Le Pen, líder de um partido idealizado pelo pai e uma das figuras centrais desta nova fase da política. A filha mais nova está em boa posição para conseguir chegar onde Jean-Marie nunca chegou, apesar das cinco tentativas: ao Palácio do Eliseu.
O Menir
Os seus primeiros anos demonstram os traços de caráter que lhe valeriam, mais tarde, o apelido de Menir. Nascido numa família de humildes pescadores em Trinité-sur-Mer, no noroeste gaulês, em 1928, Jean Louis Marie Le Pen foi protagonista de episódios de indisciplina ao longo do seu percurso escolar, mas a ida para Paris para se formar em Direito é um marco importante na vida de um jovem que devia pouco à calma. Dada a pouca profundidade da carteira dos progenitores, Le Pen era não só aspirante a advogado, tendo também dedicado o tempo livre à pesca, aos leilões e até às minas para conseguir financiar a sua educação. O espírito de luta e de inconformismo já estava bem patente num jovem que era também extremamente patriota, quase chauvinista, alistando-se voluntariamente no exército. Foi posteriormente destacado para a guerra franco-argelina e para a Indochina francesa, onde serviu como paraquedista. No conflito que mais sobressai na carreira militar de Le Pen, na Argélia, surgiram várias acusações de crimes de guerra como eletrocussão, espancamentos, violações e outros episódios de tortura, com especial destaque para o testemunho que Ghaniya Meroune, filha de um rebelde argelino, deu ao jornal britânico The Guardian.
Tal como os monumentos megalíticos, Jean-Marie Le Pen era inabalável nas suas convicções, mesmo que fossem por vezes contraditórias. O seu fervoroso patriotismo choca com as declarações feitas no seu livro de memórias, onde dá a entender a simpatia pelo regime de Vichy, um regime que assinou o armistício com Hitler e foi responsável pela colaboração na tentativa de marginalizar a comunidade judaica, tendo também deportado, até 1944, cerca de 80 mil judeus para campos de extermínio nazi no Leste, segundo a Faculdade de História da Universidade de Oxford. É importante, contudo, notar que «o zelo de Vichy em marginalizar os judeus do resto da população foi, portanto, complicado pela sua prioridade de renascimento nacional que não procurou inicialmente excluir os judeus que desejavam contribuir», constata a mesma fonte. «Sou a favor da discussão da política de colaboração, dos seus defeitos e dos seus excessos, na condição de analisarmos os defeitos e os excessos de todos», escreveu Jean-Marie Le Pen, que também criticou Charles De Gaulle, um ícone na recuperação do orgulho francês após a humilhação da II Guerra Mundial, atirando que o General, para além de dizer «banalidades» e de ser «feio», foi, e continuou a ser, «uma terrível fonte de sofrimento para a França».
Uma vida dedicada ao combate político
Após a controversa carreira militar, que lhe valeu a Croix de la Valeur Militaire (Cruz de Valor Militar) – distinção atribuída a militares que demonstrem valentia perante o inimigo em território estrangeiro -, Jean-Marie Le Pen foi eleito deputado em 1956, com apenas 28 anos. Nos anos 60 foi condenado a dois meses de prisão com pena suspensa, sentença à qual acresceu uma multa na ordem dos 10 mil francos, por «apologia a crimes de guerra».
Mas é em 1972 que o fervoroso nacionalista rompeu com os partidos conservadores ditos mainstream, fundando a Frente Nacional e abrindo o caminho para os movimentos reacionários que hoje prosperam, surfando na onda da imigração descontrolada. Um partido assente, desde a primeira hora, no combate à imigração – à época, contra a imigração de cidadãos das antigas colónias francesas – na retórica antissemita. Na década de 1980, foi acusado de violação da Constituição francesa após dizer que o Holocausto foi um mero «detalhe» na história da Segunda Guerra Mundial.
A CISÃO
Porém, e tal como hoje, a retórica do pai da chamada extrema-direita francesa colou principalmente nas classes trabalhadoras, os principais afetados pelo aumento da criminalidade e pela deterioração das condições de vida. Mesmo assim, Le Pen nunca conseguiu chegar à presidência francesa, após tentativas em 1974, 1988, 1995, 2002 e, por último, em 2007, antes de entregar a liderança do partido à sua filha mais nova. Em 2014, veio a cisão. Após (mais) uma declaração antissemita do pai, que Marine Le Pen classificou-a como um «erro político», foi banido do website do partido. Jean-Marie disse, à data, que a filha lhe espetou «uma faca nas costas». «Se os irrito, só têm de me matar (…) Não me vou suicidar», disse, bem ao seu estilo. Um ano mais tarde, foi expulso do partido, tendo continuado a servir como eurodeputado até 2019. Em 2018, o partido mudou de nome para Rassemblemnt National.
«Uma idade venerável tinha levado o guerreiro, mas tinha-nos devolvido o nosso pai. A morte veio para o levar de nós. Muitas pessoas que ele ama estão à sua espera lá em cima. Muitas pessoas que o amam estão a chorá-lo aqui em baixo. Bons ventos, bons mares, pai!», escreveu Marine Le Pen na sua conta oficial do X.
Enquanto isto, várias fações da esquerda juntaram-se nas ruas em celebração. Não deixa de ser, em última instância, um retrato de um país completamente fraturado. Ainda assim, as ideias do (agora caído) Menir continuam bastante presentes na política, na cultura e na sociedade francesa.