A Anatomia do Armário

Existe algo de profundamente kafkiano na forma como nos relacionamos com a moda, quase como que uma metamorfose diária onde acordamos como pessoas normais e, depois de 45 minutos de pânico em frente ao guarda-roupa, emergimos como personagens de uma peça de teatro que ninguém ensaiou.

Sempre achei que o simples acto de escolher uma peça de roupa pela manhã era uma forma moderna de tortura psicológica. Abrir o armário e defrontar todas aquelas peças, cada uma carregando o peso de uma escolha e de uma identidade, pode ser verdadeiramente esmagador.

E foi precisamente esta sensação de ansiedade matinal que levou o meu psicanalista — um homem notável que consegue cobrar 150 euros por hora para dormir enquanto eu falo — a sugerir que eu escrevesse sobre as minhas neuroses relacionadas com a roupa que visto. «Projecte as suas neuroses no papel», disse ele, entre dois sonoros roncos, enquanto eu calculava mentalmente quantos meses de prestações do crédito à habitação aquela soneca me custava.

Acontece que descobri que as minhas ansiedades são surpreendentemente comuns em Portugal. Existe algo de profundamente kafkiano na forma como nos relacionamos com a moda, quase como que uma metamorfose diária onde acordamos como pessoas normais e, depois de 45 minutos de pânico em frente ao guarda-roupa, emergimos como personagens de uma peça de teatro que ninguém ensaiou.

Esta teatralidade quotidiana manifesta-se de forma particularmente evidente nas ruas do Chiado, esse purgatório comercial onde as pessoas vão expiar os seus pecados através do cartão de crédito. Foi lá que me deparei com um par de calças propositadamente rasgadas que custavam mais do que o meu primeiro carro — um velho Renault 5 que tinha vivido tantas vidas que já merecia uma autobiografia.  Confesso que havia algo de profundamente perturbador em pagar uma pequena fortuna por algo que parecia ter sobrevivido ao holocausto.

Confrontado com a minha perplexidade, o vendedor — um jovem com um ar que sugeria que tinha acabado de descobrir a existência de Sartre (e não tinha gostado) — tentou explicar-me que as calças eram authentically distressed. Authentically distressed é exactamente como eu me sinto cada vez que entro numa loja de roupa moderna, seja no Chiado ou em Marvila, onde armazéns abandonados se transformaram em templos de café a 5€ e roupa «curada» a preço de ouro.

Esta busca pelo desgaste artificial manifesta-se também nos ténis urban — sapatos desenhados para parecer que acabámos de atravessar uma zona de guerra, quando na realidade a única batalha que testemunharam foi a disputa pelo último lugar de estacionamento no centro comercial. São o equivalente calçado da síndrome do impostor — sapatos caros que fingem ser pobres, usados por pessoas com dinheiro que fingem ser «autênticas».

Esta obsessão com a autenticidade reflecte-se, de forma ainda mais pronunciada, nas falsificações em Portugal. Platão falava da diferença entre o mundo das ideias e o mundo material, mas nós criámos um terceiro reino ontológico: o mundo das «boas imitações». Um universo paralelo onde nada é verdadeiramente autêntico, mas tudo é «praticamente igual ao original» — um limbo metafísico onde malas Vuitton de 30 euros coexistem pacificamente com relógios Rolex que começam a enferrujar ao primeiro contacto com o oxigénio.

Por falar em autenticidade temporal, os relógios tornaram-se verdadeiros objectos de estudo sobre a natureza do tempo e da vaidade. Há pessoas que usam relógios caros para mostrar que têm dinheiro, pessoas que usam relógios falsos para mostrar que gostariam de ter dinheiro, e pessoas como eu, que usam o telemóvel para ver as horas e ainda assim chegam atrasadas a todo o lado. É como se o próprio conceito de pontualidade fosse uma construção social que decidimos colectivamente ignorar.

Levando a autenticidade ao extremo, alguns optam por soluções mais permanentes. As tatuagens que emergiram como uma curiosa forma de moda imutável num mundo de tendências passageiras. Kafka escreveu sobre um homem que acorda transformado num insecto gigante. Hoje, temos pessoas que acordam e decidem transformar-se numa galeria de arte ambulante. Tenho um vizinho — um contabilista respeitável durante a semana — que aos fins de semana parece um manuscrito medieval com pernas: a mesma pessoa que faz declarações de IRS tem um braço inteiro dedicado a dragões chineses, numa peculiar fusão entre o mundano e o extraordinário.

Esta procura obsessiva pela autenticidade manifesta-se também na nossa relação paradoxal com a sustentabilidade. Compramos t-shirts de algodão orgânico fabricadas por artesãos tibetanos, frequentamos second-hand boutiques onde uma camisa vintage custa mais do que três novas, e ainda assim acabamos por encomendar cinco versões diferentes da TikTok Shop porque estavam em promoção. É a sustentabilidade à portuguesa, com um bocadinho de culpa católica, outro tanto de «já agora!» e uma pitada de «mas desta vez é mesmo a última».

O fenómeno vintage e a nossa relação com o passado revelam um fascinante abismo geracional. Enquanto a minha avó ainda guarda religiosamente aquele casaco de 1973 «porque pode fazer falta», a geração Z trata as roupas como se fossem stories do Instagram — efémeras, descartáveis e sempre a precisar de um filtro. A nova geração vasculha feiras da ladra e lojas dos anos 80 como arqueólogos em busca de artefactos sagrados, pagando fortunas por peças que cheiram a naftalina e desilusão. No meio, está a minha geração, paralisada entre a culpa de gastar demasiado em roupa e o medo de parecer que ainda vive nos anos 90.

E é neste contexto que o mundo digital amplificou ainda mais estas contradições, transformando influencers portugueses nos descobridores do século XXI, explorando territórios já descobertos há décadas e elevando pequenos-almoços a expedições épicas. Vasco da Gama nunca precisou de nenhum ring light para documentar as suas descobertas, nem perdeu horas a escolher o filtro perfeito para o Instagram. Hoje, estes influencers, são capazes de transformar um simples café com pastel de nata numa experiência transcendental digna de quinze stories e uma reflexão profunda sobre autenticidade, tudo isto com roupas que custam o equivalente ao PIB de uma pequena nação africana.

Com a normalização do trabalho híbrido, a moda transformou-se num exercício de dualidade ainda mais extremo: business casual em cima para as videochamadas, festival de pijama em baixo. É o equivalente moderno ao mullet dos anos 80 — business on top, party on the bottom. Em casa somos todos como aqueles cenários de teatro onde só existe a fachada — por trás, é só estruturas de madeira e cabos eléctricos. Ou neste caso, calças de fato de treino com buracos e meias desirmanadas.

Todo este teatro da moda encontra o seu palco principal nos centros comerciais, transformados em templos pós-modernos onde as pessoas vão praticar o seu ritual de autopunição semanal. É fascinante observar como conseguimos transformar o acto de gastar dinheiro que não temos em coisas de que não precisamos, numa espécie de ritual purificador. Cada compra é uma pequena morte do ego, seguida de uma ressurreição através do consumo. Nietzsche chamaria a isto o eterno retorno do cartão de crédito.

No fundo, a relação dos portugueses com a moda é uma alegoria sobre a condição humana moderna. Queremos parecer ricos sem ter dinheiro, sofisticados sem fazer esforço, e únicos enquanto copiamos todos os outros. Como diria Descartes se fosse português: «Compro, logo existo». Embora, conhecendo os portugueses, provavelmente seria mais «Compro a prestações, logo vou existindo aos poucos».