Reino Unido. Um escândalo encoberto

O ressurgimento do caso dos ‘grooming gangs’ que violaram milhares de raparigas desfavorecidas volta a atormentar Keir Starmer. O escândalo não ajuda a popularidade decrescente do primeiro-ministro.

O Reino Unido, como já tinha sido notado em edições anteriores do Nascer do SOL, atravessa momentos complicados. A desunião cresce a cada dia, com a popularidade do primeiro-ministro, eleito há meio ano, a cair de forma mais ou menos proporcional. São casos atrás de casos, dos ataques à liberdade de expressão a leis onerosas contra o setor agrícola. Com se não fosse suficiente para debilitar um governo do Labour acabado de chegar ao número 10 de Downing Street, ressurgiu, há sensivelmente uma semana, um caso que já tem vários anos. E não é um caso menor, é um escândalo de grandes proporções que promete mudar o panorama político britânico.

Em causa está o encobrimento das ações desumanas dos grooming gangs, ou gangues de aliciamento em português, para com raparigas britânicas (crianças e adolescentes). Estas jovens, na maioria dos casos desfavorecidas, com problemas familiares ou até em instituições estatais, foram abusadas e utilizadas em enormes redes de pedofilia. A questão principal? Uma preocupação desmedida pelo politicamente correto, que levou a algo que pode ser denominado de encobrimento ou simplesmente um fechar de olhos, já que os relatórios que resultaram das investigações – principalmente o Relatório Jay, de 2014 – demonstraram que estes crimes eram cometidos, maioritariamente, por cidadãos britânicos de origem paquistanesa. O caso de Rotherham, abordado no relatório mencionado, é impactante, com cerca de 1400 raparigas a serem abusadas entre 1997 e 2013, e um reflexo do que aconteceu noutras cidades como Rochdale e Oldham. É também importante relembrar que num inquérito independente realizado há pouco mais de dois anos, cerca de 7000 raparigas testemunharam, com 4000 a serem ajudadas no âmbito de uma task force criada em 2023.

O tema tem sido reavivado ao longo dos anos, principalmente pela direita populista e pelos Conservadores, que durante esta semana apresentaram perante o Parlamento britânico um pedido de investigação. Starmer e os deputados do seu partido, deitaram abaixo a moção.

O ressurgimento

Mas por que razão se voltou a tirar os casos debaixo do tapete? Ao contrário do que tem sido publicado um pouco por toda a parte, não se deveu apenas a uma série de publicações polémicas e que incendiaram o debate de Elon Musk nas redes sociais. Há muito mais para além da influência do inevitável Musk, que é acusado de intromissão pelos críticos.  Abigail Anthony, da revista americana National Review, aponta todas as outras razões de maior importância, valendo a pena citar na íntegra: «A primeira é que algumas transcrições do tribunal que revelam pormenores sobre os gangues foram recentemente divulgadas ao público. Em segundo lugar, a sentença judicial do angustiante caso de Sara Sharif ocorreu em dezembro. Embora o caso de Sharif não tenha sido exatamente sobre gangues de aliciamento, expôs falhas no sistema de imigração, nos serviços de apoio à criança e na assimilação cultural; as observações do juiz sobre a sentença afirmam que Sara tinha mais de 70 ferimentos recentes e 25 fraturas ósseas separadas quando morreu aos dez anos de idade, em 2023, às mãos do pai, da madrasta e do tio, que fugiram para o Paquistão depois de a terem assassinado. Em terceiro lugar, Jess Phillips (ministra da Proteção de Menores do Reino Unido) negou recentemente a realização de um inquérito de investigação sobre os gangues e sugeriu que essas questões podem ser tratadas pelas autoridades locais – uma grande tarefa para uma autoridade local e insuficiente para resolver os problemas a nível nacional. Em quarto lugar, a cidade de Rotherham foi declarada Capital da Cultura para as Crianças em 2025; tal título é como um gigantesco dedo do meio para a longa lista de vítimas infantis da cidade. E, em quinto lugar, os abusos continuam a verificar-se, não se tratando de uma tragédia histórica que possamos dizer que foi esmagada».

Ainda assim, a postura de Elon Musk foi, certamente, um impulsionador da causa, dirigindo acusações graves ao primeiro-ministro britânico e à ministra Phillips: «[Starmer foi] profundamente cúmplice das violações em massa em troca de votos», «[Jess Phillips é] apologista do genocídio da violação», incitando à sua prisão. As ondas de choque provocadas pela ação do magnata americano levaram o próprio Starmer a realizar uma conferência de imprensa, onde afirmou que «aqueles que estão a espalhar mentiras e desinformação não estão interessados nas vítimas, mas neles próprios».

Envolvimento do primeiro-ministro

Starmer, antes de chegar a líder do Labour e à chefia do executivo britânico, foi responsável por chefiar o Crown Prosecution Service (Serviço de Acusação da Coroa) de 2008 a 2013, período no qual este ramo do sistema judicial britânico decidiu não processar os membros de um gangue na cidade de Rochdale, considerando que a vítima não era «fiável». Uma decisão que se revelou controversa, e até errada, já que o próprio Procurador-Geral para o noroeste de Inglaterra, Nazir Afzal, anulou esta decisão, levando à condenação de nove homens em Rochdale, como noticiado pela Euronews.

Com vista a esclarecer todo o processo, e também para debilitar o Governo e ganhar pontos como líder da oposição, a nova líder dos Conservadores, Kemi Badenoch, enfrentou o primeiro-ministro no Parlamento, apresentando um pedido de inquérito: «Vamos à verdade. O primeiro-ministro não pode dar a conhecer ao Parlamento a dimensão total do escândalo, não quer que sejam feitas perguntas a políticos do Labour que possam ser cúmplices, não quer ouvir as vítimas que estão a pedir um inquérito nacional (…) Ainda hoje, o primeiro-ministro vai dizer aos deputados do Labour de Telford, Rochdale, Bristol, Derby, Aylesbury, Oldham, Bradford, Peterborough, Conventry, Middlesbrough, Newcastle e Ramsgate que que votem contra um inquérito nacional sobre os gangues que violaram sistematicamente crianças nos seus círculos eleitorais». «Este é um dos maiores escândalos da história britânica. (…) Seja um líder, não um advogado», concluiu Badenoch.

A previsão da líder da oposição revelou-se certa, com a proposta de inquérito a acabar mesmo por ser reprovada, com 364 votos contra e 111 a favor, nunca clara divisão esquerda/direita. «Não haverá mais truques conservadores ou retórica vazia. A minha mensagem para os criminosos que ainda pensam que podem entrar nas nossas fronteiras é a seguinte: não há sítio para se esconderem. Vamos atrás de vocês», publicou Starmer na manhã de ontem, após ter justificado a recusa ao inquérito com base na afirmação de que vários inquéritos já foram feitos, e que mais um atrasaria o processo de ação que as vítimas realmente precisam.

Posto isto, o cenário político britânico passa por tempos turbulentos, com um Governo a ficar cada vez mais frágil. Este caso desumano e perturbador continuará a ser esmiuçado nos próximos tempos, restando apenas esperar pelo desenvolvimento das dinâmicas políticas e sociais vindas de terras de sua Majestade.