Boeing. Em queda livre e com perdas acumuladas de mais de 30 mil milhões

Em apenas três meses apresentou um prejuízo de mais de seis mil milhões de euros e vê-se a braços com problemas financeiros “difíceis de resolver”. Para já, prevê despedir 10% dos trabalhadores e adiar projetos novos aviões.

A Boeing está em queda livre desde 2018. A história recente da gigante aeronáutica tem sido marcada por série de problemas, incidentes e acidentes. O mais recente foi o acidente na Coreia do Sul, que ocorreu em dezembro e matou 179 pessoas. O motivo da queda do avião pilotado pela Jeju Air ainda está em investigação e é provável que a Boeing não seja considerada responsável. O avião que transportava 181 passageiros – apenas dois sobreviveram – incendiou-se depois de ter derrapado na pista e ter embatido contra uma vedação de betão. Segundo as autoridades, o trem de aterragem dianteiro não se abriu. 

Um acidente que levou as autoridades sul-coreanas a lançar um plano de revisão do perímetro dos aeroportos após o pior acidente aéreo da sua história, quando um avião colidiu com um muro no final da pista após aterrar de emergência.

É certo que o ex libris, o 737 tem atravessado uma fase turbulenta e ganhou maiores contornos em janeiro passado quando perdeu uma porta em pleno voo. A quase cinco mil metros de altitude, o avião da Alaska Airlines perdeu o painel com o qual havia sido selado um buraco destinado a abrigar uma porta de emergência adicional, uma medida habitual em aviões que fazem viagens com baixa densidade de passageiros. 

Durante as inspeções foram encontrados parafusos mal apertados em outros aviões, o que levou a Administração Federal da Aviação dos Estados Unidos a aumentar o escrutínio da empresa e a solicitar que resolva os “problemas sistémicos de controlo de qualidade” de todos os seus aviões. A empresa tem também estado na mira da Justiça. 

Uns meses antes, em agosto, a NASA decidiu que uma nave espacial da Boeing não era suficientemente segura para transportar dois astronautas da Estação Espacial Internacional para a Terra.

Problemas financeiros

Todas estas crises tem provocado graves problemas financeiros. “A situação financeira da Boeing tem sido particularmente desafiadora nos últimos cinco anos. A empresa acumulou perdas superiores a 30 mil milhões de dólares (mais de 29,4 mil milhões de euros), em grande parte devido aos problemas associados ao 737 MAX, o que afetou as suas receitas e resultados operacionais. A ameaça latente de um downgrade no rating de crédito também é preocupante, pois resultaria num aumento de custos de financiamento”, refere ao nosso jornal, Henrique Valente, representante de contas da ActivTrades.

Também Henrique Tomé, porta-voz da XTB, lembra que a situação da Boeing tem-se vindo a agravar: os últimos resultados trimestrais mostram que a empresa apresenta prejuízos avultados em comparação com os últimos trimestres, atingindo um resultado líquido negativo de mais de seis mil milhões de dólares (mais de 5,8 mil milhões de euros), em apenas três meses. “Estes dados são bastante preocupantes para a empresa, dado que a mesma já tinha apresentado resultados negativos nos anos anteriores. Neste momento, com um valor contabilístico da empresa negativo, e uma dívida significativa, a empresa subsiste, principalmente, devido às injeções de capital provenientes do Estado”, diz ao i.

Reestruturação em marcha 

Para fazer face às fortes perdas, em outubro, a empresa anunciou que iria despedir cerca de 10% dos funcionários, isto é, cerca de 17 mil trabalhadores e vai incluir executivos, gestores e funcionários. 

Ao mesmo tempo, adiou para o próximo ano, o lançamento do novo avião: 777X, e cancelou a construção da versão de carga do aparelho 767 em 2027, depois de terminar as encomendas atuais.

Henrique Tomé, entende que “os problemas financeiros atuais da empresa são estruturais e difíceis de resolver”. Ainda assim, reconhece que “a redução da força de trabalho da Boeing vai ajudar a empresa a enfrentar parte desses obstáculos, mas dificilmente será o suficiente para dar à Boeing o capital necessário para recuperar do momento em que vive”.

Uma opinião partilhada por Henrique Valente. “Mais do que uma solução definitiva para os problemas estruturais da empresa, a medida deve ser interpretada como um sinal para os mercados e para os credores. Embora ajude a aliviar a pressão imediata sobre a liquidez, o verdadeiro impacto dependerá de outros fatores, como o ajuste da capacidade operacional à procura e a renegociação das dívidas. Em última análise, estas medidas são uma tentativa de salvaguardar o rating de crédito e sinalizar aos investidores e credores que a empresa está comprometida em lidar com os seus problemas estruturais”, salienta .

Outra dor de cabeça diz respeito à rescisão unilateral de um acordo de fusão das operações de aviação comercial entre a Embraer e a Boeing, o que irá obrigar esta última a pagar uma indemnização de 150 milhões de dólares (mais de 147 milhões de euros). Recorde-se que, em 2018, as duas empresas anunciaram um acordo de fusão da área de aviação comercial e a criação de uma joint venture (nova empresa comum) avaliada à época em 4,2 mil milhões de dólares (3,7 mil milhões de euros, na cotação atual), da qual a fabricante norte-americana assumiria o controlo, com 80% do capital, e a fabricante brasileira ficaria com 20% do capital. No entanto, dois anos depois do anúncio do acordo, a Boeing cancelou o negócio unilateralmente sob a alegação de que a fabricante brasileira não tinha atendido as condições necessárias previstas, enquanto a Embraer afirmou que a fabricante norte-americana desistiu do negócio devido a problemas financeiros.

O impasse levou à abertura de um processo arbitral, no qual a Embraer pediu reparações do investimento feito para separar os departamentos

que ficariam com a nova empresa e o fabrico de aeronaves, das divisões de defesa e aviação executiva, que seriam mantidos sob controlo da fabricante brasileira

Peso do negócio militar

A par da aviação comercial, a Boeing também tem uma parte significativa do seu negócio – na ordem dos 50% – assente em aviões militares. Mas também neste segmento tem vindo a perder terreno. Ainda assim, a empresa continua a valorizar esta área de negócio: “A Boeing inaugurou a era do jato, lançou a era espacial, revolucionou as aeronaves de asas rotativas e defende a liberdade em todo o mundo: O nosso trabalho é importante para aqueles que mais importam”, refere no seu site.

No final de novembro, a empresa anunciou que irá construir 15 aviões-tanques KC-46A para a Força Aérea dos Estados Unidos. Desde 2019, a Boeing entregou 89 KC-46As à Força Aérea dos Estados Unidos e quatro à Força Aérea de Autodefesa do Japão.

Em agosto tinha sido a vez da Polónia de ter adquirido à Boeing 96 helicópteros Apache por 9,14 mil milhões de euros. Um investimento que chegou a ser visto pelo vice-ministro da Defesa, Pawel Bejda, como “uma garantia para a liberdade” do país e foi um passo importante no contexto da modernização do exército polaco, acelerada pela invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022.

Também Israel assinou em novembro passado um acordo com a companhia norte-americana para a compra de 25 caças F-15 de “nova geração”, financiados pela ajuda militar dos Estados Unidos. O acordo, no valor de 5,2 mil milhões de dólares (mais de cinco mil milhões de euros) inclui uma opção para mais 25 aviões. Os caças serão entregues em lotes de quatro a seis por ano, a partir de 2031 e serão “equipados com sistemas de armas de última geração, incluindo a integração de tecnologias israelitas avançada”.

Por outro lado, a empresa vendeu recentemente uma subsidiária de defesa, a Digital Receiver Technolog, que fabrica equipamento de vigilância para as forças armadas dos Estados Unidos à empresa francesa Thales Defense & Securit, não revelando, no entanto, os valores envolvidos nesta operação. 

Quem é o novo líder

Depois de ter apresentado prejuízos para 1,79 mil milhões de dólares no primeiro semestre de 2024, a Boeing anunciou Kelly Ortberg de 64 anos como CEO da empresa – visto por muitos como um veterano da comunidade empresarial aeroespacial – substituindo Dave Calhoun que enfrentou uma série de graves incidentes que afetaram a imagem da companhia. Na altura, Ortberg admitiu que tinha muito trabalho pela frente: “Temos claramente muito trabalho a fazer, mas estou confiante que, trabalhando juntos, devolveremos a empresa à posição de liderança que dela se espera”, referindo que a empresa tinha “o que é preciso para ganhar”. 

Mas deixou um alerta: “Há vidas que dependem do que fazemos diariamente e devemos ter isso em mente como uma prioridade em cada decisão que tomamos”.

Mas quem é o novo líder? Ortberg iniciou a sua carreira em 1983 como engenheiro na Texas Instruments, antes de passar mais de três décadas na Rockwell Collins, Inc, onde começou como gestor de programas e ocupou vários cargos de liderança antes de ser nomeado presidente e diretor executivo da empresa em 2013. Também foi presidente do conselho de administração de 2015 a 2018.

Após a integração da Rockwell Collins com a United Technologies Corporation, Ortberg desempenhou o cargo de diretor executivo da recém-criada empresa Collins Aerospace de dezembro de 2018 a fevereiro de 2020.

Após a sua passagem pela Collins Aerospace, Ortberg foi consultor do gabinete do diretor executivo da RTX Corporation até março de 2021, onde também esteve presente no conselho de administração de 2019-2024.

Ao i, Henrique Valente admite que “a substituição de CEO em resposta a crises, como a que a Boeing atravessa, é uma medida frequentemente necessária e expectável para tentar corrigir a trajetória atual da empresa, embora a frequência dessas mudanças possa gerar instabilidade no curto prazo”. 

Um argumento que foi usado pelo próprio administrador. “A nossa empresa encontra-se numa situação difícil (…) que exige decisões difíceis e teremos de efetuar mudanças estruturais para garantir a competitividade e a satisfação dos nossos clientes a longo prazo”, referiu, na altura, Ortberg aos funcionários.

Impacto na reputação

De acordo com o responsável, o setor aeroespacial é dominado pela Boeing e Airbus, e o valor estratégico que elas representam para os EUA e a Europa respetivamente, não pode ser descontado. “É certo que a empresa tem perdido quota de mercado para a sua contraparte europeia e que se encontra num mau momento, mas dada a sua importância e as barreiras à entrada no setor da aviação, o risco existencial não é iminente no contexto atual”, diz.

E acrescenta: “A imagem da empresa ficou fragilizada no decorrer das crises e acidentes trágicos que envolveram os seus aviões nos últimos anos. A segurança é um ponto crítico neste setor, e nesse sentido, será necessário um esforço contínuo para restaurar a sua reputação”.

Também Henrique Tomé chama a atenção para o facto de os acidentes aéreos implicaram “sempre consequências sérias para a reputação” das companhias de aviação. E acrescenta: “É importante lembrar que estas empresas não são propriamente responsáveis por esses acidentes. A responsabilidade, por norma, recai nos pilotos ou nos próprios fabricantes dos aviões”. No entanto, reconhece que a Boeing “tem registado vários casos insólitos nos últimos tempos, que comprometem a reputação da empresa e, por consequência, pode levar os investidores a desistirem de apostar na empresa”.