Presépio

Uma nação não é uma terra de ninguém que alguém, em tempos, ocupou. É uma comunidade de crenças, valores e afetos forjados lenta e profundamente ao longo dos séculos.

Lembro-me dos tempos não muito distantes em que árvores de Natal e presépios conviviam no espaço público. As primeiras, talvez com origens pagãs, com cunho mais secular; os segundos, evocativos do significado cristão da data, mais carregados religiosamente. A convivência parece agora difícil. O presépio não apareceu junto da árvore de Natal no Parlamento, nem na Reitoria da minha Universidade, nem, julgo, em qualquer edifício público. Portugal é um estado laico, argumenta-se. Portugal é agora uma sociedade multicultural que acolhe muitos não-cristãos, reforçam outros. Mas, então, pergunto, porquê comemorar sequer o Natal? Porquê os feriados oficiais? O que acharão que se está a comemorar? Será apenas uma questão de tradição, uma tradição arcaica que o tempo tornou anacrónica?
Não tenho a graça da Fé. Ser agnóstico, contudo, não me impede de reconhecer quanto a nossa civilização, o que somos, o que acreditamos, o que consideramos natural e justo, moral ou imoral, está imbuído dos valores do Cristianismo – um ponto que o historiador Tom Holland tem feito com particular brilhantismo. As igrejas podem estar vazias e as vocações podem escassear, mas, sem que disso tenhamos necessariamente consciência (como não temos consciência de respirar), foi o Cristianismo que forjou os valores que ordenam a nossa vida em sociedade, desde o secularismo ao respeito pelos mais fracos, passando pela moral sexual. Tom Holland nota mesmo que todas as revoluções da era moderna – americana, francesa e russa -, ou as lutas pelos direitos cívicos – dos negros, das mulheres ou gay -, bebem na ideia profundamente cristã de que Deus está mais próximo dos fracos do que dos poderosos, de que o último será o primeiro.
As sociedades no Ocidente encontram-se, assim, recheadas de pressupostos, normas e referências cristãs. E, por isso, as suas (nossas) instituições (o conjunto de princípios escritos ou implícitos que regem a vida coletiva) não são universais. A separação entre o secular e o religioso não é universal, o conceito de que todos os seres humanos têm direitos naturais não é universal, a ideia de liberdade e de livre arbítrio não é universal, a ideia de igualdade entre homens e mulheres não é universal, a separação entre a igreja e o estado não é universal, a ideia de que todas as religiões são iguais não é universal, (como o massacre do Charlie Hedbo ocorrido há precisamente 10 anos nos recorda). Pensar o contrário, nota Holland, é prova de quão cristãos somos.
Uma nação não é uma terra de ninguém que alguém, em tempos, ocupou. É uma comunidade de crenças, valores e afetos forjados lenta e profundamente ao longo dos séculos. A nossa reflete muitas influências, certamente, mas foi forjada principalmente pelo Cristianismo. Quando se renega esta referência renegamo-nos. E os outros? Aqueles que convidamos para a nossa casa e que não comungam desta mundivisão, pois ela não é universal nem naturalmente partilhada por todos? O que quem acolhe deve esperar é respeito e aceitação das regras e crenças da casa hospitaleira. O que não parece razoável é ser-se convidado e querer comportar-se na casa de terceiros como se da nossa se tratasse. Quando isso não é possível porque representa uma distorção implausível da religião ou valores dos convidados, mais vale manter as portas fechadas.