O contexto geopolítico atual, com conflitos em várias geografias, traz consigo riscos em várias dimensões. A economia e a diplomacia são duas áreas que instintivamente sobressaem quando se fala em guerra, mas a circulação de pessoas, neste caso concreto por meios aéreos, está também, naturalmente, ameaçada.
Segundo dados da Statista, cerca de cinco mil milhões de pessoas viajaram em avião no ano de 2024, confirmando uma tendência crescente que apresentou um declínio apenas no período anómalo da covid-19. Para além de servir de transporte para uma boa parte da população mundial, a aviação assume um papel de incontornável importância para a economia: “A carga aérea”, lê-se no website da ASD, a voz da indústria europeia Aeroespacial, de Segurança e de Defesa, “é fundamental para apoiar o sistema atual de comércio global, estimando-se que 35% do valor do comércio mundial seja transportado por via aérea”.
Como têm defendido vários académicos ao longo dos anos, o transporte aéreo é vulnerável perante vários fatores, sendo a guerra um dos principais. A invasão da Ucrânia pela Rússia constitui mais um conflito em solo europeu, e, como seria de esperar, a indústria da aviação foi altamente afetada e forçada a repensar a sua operabilidade. Os ucranianos rapidamente fecharam o seu espaço aéreo, a União Europeia fechou-o para aviões russos e Moscovo ripostou na mesma moeda. “O espaço aéreo diretamente relacionado inclui cerca de 17 879 000 quilómetros quadrados de espaço aéreo russo e 674 000 quilómetros quadrados de espaço aéreo ucraniano. Antes do conflito, quase metade das companhias aéreas da região polar tinham de voar através deste espaço aéreo no seu trajeto mais curto”, pode ler-se num estudo dos investigadores Chen Chu, Hengcai Zhang, Jiayin Zhang, Lin Cong e Feng Lu.
Mas para além dos habituais constrangimentos provocados por qualquer conflito, quais são as verdadeiras ameaças que o Kremlin coloca à aviação?
Um acidente dúbio
Falar de Rússia e de aviação remete-nos, inevitavelmente, para o desastre que aconteceu com o voo 8243 da Azerbaijan Airlines no passado dia de Natal. Morreram trinta e oito pessoas, tendo outras vinte e nove resistido a uma queda que o Presidente azeri, Ilham Aliyev, rapidamente atribuiu ao aparato militar russo.
O Embraer 190 partiu de Baku com destino a Grozny, na Chechénia, uma das Repúblicas que integram a Federação Russa, que, nesse dia, estava sob ataque de drones ucranianos – um ponto fundamental. O politólogo Henrique Santos colocou as seguintes questões na edição de 3 de janeiro do Nascer do SOL: “Mas que raio faria o voo (…) a 500Km do seu destino, quando já estava a chegar? E porque “desapareceu” dos radares desde que estava para aterrar até pouco antes de se despenhar do outro lado do Mar?”. E é precisamente isto, juntamente com a decisão de desviar o voo em direção ao Mar Cáspio num momento de emergência, que nos remete para a possibilidade de ter sido culpa do Governo russo.
O avião conseguiu ultrapassar o mar, mas acabou por se despenhar na tentativa de chegar a um aeroporto em Aktau, já no território do Cazquistão. “Podemos afirmar com toda a clareza”, disse Aliyev, “que o avião foi abatido pela Rússia. (…) Não estamos a dizer que foi feito intencionalmente, mas foi feito”. A controvérsia intensificou-se quando a Rosaviatsia, a autoridade russa responsável pela aviação, apresentou três versões diferentes para justificar o desvio: primeiro teria sido por uma colisão com um bando de aves, depois pelo nevoeiro cerrado e, por fim, admitiu-se que o ataque ucraniano representou um fator importante para o desastre.
John Kirby, porta-voz do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos, afirmou, citado pela CBS News, que as autoridades americanas “viram algumas indicações iniciais que certamente apontam para a possibilidade de este jato ter sido derrubado pelos sistemas de defesa aérea russos”, mas deixou claro que são as autoridades azeris e cazaques que estão responsáveis pelas investigações mais profundas. A CBS reportou ainda o testemunho de Yan Matveyev um especialista em assuntos militares russos, indicando que, ao que parece, “a secção da cauda do avião foi danificada por alguns fragmentos de mísseis”, confirmando a teoria de que a aeronave foi atingida por um míssil russo terra-ar.
Inevitavelmente, o Presidente russo, Vladimir Putin, estabeleceu uma ligação com Aliyev, com o objetivo de lamentar o “incidente trágico”: “Vladimir Putin pediu desculpa pelo trágico incidente ocorrido no espaço aéreo russo e expressou mais uma vez as suas profundas e sinceras condolências às famílias das vítimas e desejou uma rápida recuperação aos feridos”, pode ler-se no comunicado emitido pelo Kremlin.
Ainda assim, este episódio deixa claro o perigo que a Rússia representa, neste momento, para a aviação.
Sanções e ação europeia
Além do perigo que representa para a aviação no geral, a Rússia tem apresentado também números de acidentes de avião alarmantes. Apenas em 2023, foram registados 180 acidentes de avião no país, mais do dobro do que em 2022, segundo uma investigação conduzida pelo jornal russo, que opera no exílio, Novaya Gazeta. Os analistas da GlobalData identificam as sanções, os problemas nas cadeias de fornecimento e a orientação do fabrico para a guerra como os principais causadores deste incremento significativo, enquanto as fatalidades, a nível global, continuam a respeitar uma tendência negativa. Após a invasão em larga escala em fevereiro de 2022, a Boeing e a Airbus – que compunham 70% da frota aérea russa –, anunciaram que cessariam o envio de peças suplentes, uma ameaça substancial à aviação comercial de um país que dela depende.
No que à ação europeia diz respeito, a Agência da União Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) emitiu um comunicado em relação ao espaço aéreo russo para dar resposta às ameaças que a Rússia representa neste setor, principalmente após o desastre anteriormente referido. Estas indicações, chamadas Informações sobre as zonas de conflito, assentam num mecanismo criado em 2016, na sequência do desaparecimento do voo MH17 da Malaysia Airlines e cujo objetivo é “consolidar as informações e as avaliações de risco, emitindo recomendações atempadas para reforçar a segurança dos Estados-Membros, dos operadores e dos passageiros, complementando simultaneamente os esforços nacionais com uma perspetiva de risco europeia comum”.
O perigo da Rússia para a aviação fica bem patente neste documento recente da EASA, publicado a 9 de janeiro: “O conflito em curso na sequência da invasão russa da Ucrânia apresenta o risco de as aeronaves civis serem involuntariamente visadas no espaço aéreo da Federação da Rússia, devido a possíveis deficiências de coordenação civil-militar e à possibilidade de identificação incorreta.
Em particular, a ativação dos sistemas de defesa aérea russos, capazes de operar a todas as altitudes, em resposta aos lançamentos de mísseis e drones ucranianos, que se estenderam até ao interior do território russo, pode ter um impacto direto nas operações de voo em vários locais, incluindo os principais aeroportos internacionais.
A maioria dos incidentes ocorreu em espaço aéreo não fechado pela Federação Russa durante ataques de drones ou ativação de sistemas de defesa aérea. Esta situação representa um risco elevado para as operações de voo, como demonstrado pelo incidente que envolveu o voo 8243 da Azerbaijan Airlines em 25 de dezembro de 2024”.