Uma tragédia chamada Síria

Vimos ainda os restos da grandeza do passado, antes de nos despedirmos de vez do deserto sírio. A decadência espalha-se, e onde nós contemplámos ruínas outros verão apenas areais solitários. Um viajante do futuro, vindo de muito longe, poderá enterrar os pés na areia, e enrolar-se numa bandeira que em tempos representou a Síria. Irá…

Vimos ainda os restos da grandeza do passado, antes de nos despedirmos de vez do deserto sírio. A decadência espalha-se, e onde nós contemplámos ruínas outros verão apenas areais solitários. Um viajante do futuro, vindo de muito longe, poderá enterrar os pés na areia, e enrolar-se numa bandeira que em tempos representou a Síria. Irá reconhecer o rosto ao centro?

I. DAMASCO

Entrei em Damasco por Bab Touma, que foi por onde entraram Tomé, de passagem para a Índia, e Saulo, o ceguinho que veio magoado de uma queda e que umas ruas à frente voltou a ver (na rua chamada Direita). “Entrei em Damasco”, são palavras que nunca soube se ia poder escrever. As montanhas perfuradas pela estrada que leva à cidade (a Estrada de Damasco) ainda sangram das feridas dos que fugiram. A Síria vê-nos antes que a vejamos, pelos olhos do homem que conduz os seus destinos e que é omnipresente. O carro em que seguimos flutua no sangue, e é vigiado desde o primeiro momento pelos múltiplos cartazes e checkpoints metidos ao caminho. Não está longe, Damasco, mas todos os polícias e soldados nos páram na estrada, perguntam ao que vamos, e estendem uma das mãos a dar-nos passagem, enquanto a outra segura firme a notinha que serve de suborno. Que bonitos são estes montes, e viris os homens escurecidos e de bigode, vestidos de camuflado, com as suas águias e bandeiras estampadas (o preto, o branco e o vermelho, com duas estrelas verdes ao centro)… São os herdeiros dos que expulsaram os franceses, e as montanhas as mesmas que viram fugir o último dos soldados, e assim se fundou um país e se forjou uma nação, que é a da República Árabe Síria.
Sonhei muitas vezes com a cidade de Damasco. Sonhei que percorria as suas ruas estreitas e que tropeçava em restos de civilizações antigas: frisos, capitéis, leões de pedra, pedaços de castelos, a espada de Saladino, e que bebia da água com que Saulo lavou os olhos e limpou as chagas, enquanto amaldiçoava o seu cavalo. Permiti-me ver em sonhos o lugar onde Maomé se recusou a entrar, por não ser digno de entrar duas vezes no paraíso, e onde T. E. Lawrence entrou sem dever, para violar as esperanças dos árabes numa cimeira que lhes selou o destino por tantos anos. Durante algum tempo, fechei os olhos para ver Damasco, li as suas histórias, circundei-a pela Turquia, pela Jordânia e pelo Líbano, guardei rancor pelo que lhe fizeram, e alimentei as esperanças de a ver coberta de jasmim, de sentir os seus cheiros e de alucinar com as suas cores magníficas. No entanto, é verdade aquilo que dizem: não podíamos estar preparados para este lugar, envolto em mantos e em segredos. Abram bem os olhos para aquilo que vão ver, para os templos, as mesquitas, as igrejas, as pessoas e as maldições, os ícones e as flores, os estilhaços de bomba e os azulejos dourados, e tudo o que com eles mora na mais antiga capital habitada do mundo.
Fecham-se os meus olhos enquanto o contador de histórias narra qualquer coisa em árabe cantado, que me embala como a shisha embala os velhos imóveis à nossa volta. É o cansaço de um dia inteiro a percorrer as ruelas da velha Damasco, de imergir nos seus fumos e nas suas rezas, e não existe melhor embalo do que as histórias de Sherazade e de Saladino, misturadas com o calor e o vapor do café Al Nawfara, que transmitem tudo o que um dia se escreveu sobre as terras do Leste: quentes, lascivas, místicas, o palco perfeito para as aventuras de velhos reis e suas escravas. Ao cansaço junta-se o conforto de ouvir o que antes de nós tantos outros ouviram, nas centenas ou nos milhares de anos em que as histórias se contaram assim (não pararam durante a guerra), com uma certa voluptuosidade, o tarbus vermelho na cabeça do contador, espada na mão, pronta a desferir golpes mortais.
Há uma data nos relógios desta sala: 1951. Talvez tenha sido quando estes relógios deixaram de contar, tendo mesmo assim chegado longe, vendo a libertação, enterrando o Rei Faisal e a saga de amaldiçoados que vieram depois. A velhice sente-se na atmosfera misteriosa, vê-se nos desenhos das paredes de madeira, e adivinha-se no rosto do contador (adivinha fácil, esta), que é onde começam todos os seus movimentos encenados. Levanta a espada com o braço e… “zás!”, o som do ferro a bater no ferro acorda a sala (excepto o homem marreco e frouxo que fuma junto ao balcão e que não se move, porque nada nos contos de Saladino o pode incomodar). É possível que, em plena história, Saladino tenha acabado de decapitar um cruzado (faz hoje anos que o virtuoso Sultão expulsou os cruzados de Jerusalém), mas não saberemos se grunhiu o sem-cabeça, porque não percebemos o resto das palavras (percebe-as o gordo do canto, ouve-as todas as noites e nem se mexe), e não grunhe o pobre contador.
Damasco entrega-se em estado puro; estamos tão sozinhos, nós com a cidade, que nos deixamos envolver e adormecer, é o fumo e são os sons guturais, e o café árabe que perde o efeito, e lá acordaremos a toque de espada: uma salva por mais um feito do Sultão Saladino. Nas ruas da cidade, não se nota a importância de Saladino; importa pouco, e aos sírios menos, embora tenha sido usado com insistência pelo Presidente anterior, há menos de 50 anos, para implementar a crença no pan-arabismo, em tempo de crise e à falta de melhores irmãos de armas. A bravura ganhou ao Sultão uma tumba austera na Mesquita Omíada, lá onde me descalcei para cumprimentar o seu féretro coberto dos panos negros que insistem em beijar, mas perguntem pelos seus êxitos aos homens, às mulheres e às crianças sírias que se arrastam pelas ruelas de mão estendida, impondo anátemas sobre quem lhes foge (não me sai da memória a imagem do rapazinho drogado, de sete ou oito anos, que nos impôs uma rosa e que, rejeitado, beijou a mão esquerda que usou para me bater, e é esse o peso que carrego, e o de ele ter passado mais uma noite na esquadra).
Venderam-nos a imagem de um país em guerra, no fio da navalha do vigilante que observa dos cartazes (nalguns deles até os olhos estão escurecidos, como se pertencessem a um desalmado), um país blindado e esquizofrénico, e, afinal de contas, esta cidade pertence aos esfaimados, aos condenados, aos conformados, aos jovens desistentes que não querem ficar para ver a reconstrução, mas que não podem sair por onde nós entrámos. Quem comprou esta imagem – quem comprou a esquizofrenia – do conforto do seu sofá (e assim a atiçou) condenou ao esquecimento a beleza incontável de uma cidade de jasmins, que florescem entre edifícios dos omíadas e dos abássidas e dos mamelucos, e de uma multidão de dezenas de religiões e etnias, que podia ter sonhado com a paz na terra. Adivinhando o sonho, o deus dos homens, vacinado em Babel, chacinou-lhes as torres – ainda ardem. Mais resistentes do que os linguarudos dessas terras antigas, os sírios mantêm o espírito intacto, e revelam-no recebendo-nos bem, mesmo que a medo (o que se justifica porque partilhamos uma característica inapagável com quem os quis privar de tudo: viemos de fora das muralhas, lá de onde começaram todos os cercos).
A guerra do terror esteve às portas de Damasco, forçou-as com os aríetes da modernidade, entrou por elas de forma aleatória, deixando o seu rasto em vários pontos da cidade, e uma cicatriz na Mesquita Omíada. Foram os soldados que nos dão passagem, os dos bigodes e dos camuflados, os que já não sabem rir-se porque mataram (“porque é que não sou eu que estou a morrer no Norte?”), que exterminaram os radicais, vetando as leis obscurantistas que lhes quiseram aplicar, de pelo olho pagarem com o olho, e pelo dente com o dente – e os damascenos a ver. Pagam agora a conta em fantasmas.
A história desta cidade começa por boca do contador, e viaja pelo sultanato de Saladino e pelas mil e uma noites, por mulheres de véu que choram nas varandas, pelas crianças que passam por baixo e que não as vêem, porque elas estão tapadas, e que fazem furor vendendo o pão, dando depois as moedinhas aos donos que as escravizam. Viaja também por uma guerra que não lembra ao século, pelo manto de escuridão que vestiu a Síria, pela destruição que ficou e que nos pintou o imaginário de um país de cores mortas, chuvoso, abandonado em corridas desenfreadas para a fronteira e em barcos naufragados na costa do nosso mar. Suspende-se a história nos “mandarins”, os que de longe premiram os botões, a partir de luxuosas salas ovais ou de gabinetes no Eliseu, e que ainda impedem o país de se desenvolver e de se reerguer, infligindo-lhe sanções draconianas. Já dançaram tempo suficiente, distraindo os sírios, enquanto um saltimbanco de bolsos sem fundo lhes foi sugando as moedas e a confiança, fazendo inveja a Salomé. Tomem, nesta bandeja está uma batalha sem fim, e o impiedoso martírio do vosso povo. Um dia também esta história fará parte da narrativa do contador de histórias, e alguns vão sabê-la de cor, perder o espanto, ignorá-la fumando shisha; outros vão adormecer de cansaço ao ouvi-la, abrindo os olhos sempre que a espada vibrar na mesa… Se não entenderem árabe, saberão apenas que algum herói há muito desaparecido terá, em plena narrativa, acabado de decapitar ou de ser decapitado. Reconhecerão apenas um nome, que poderá ser “Bashar” ou outro, e o seu dono, mais ou menos virtuoso, terá campa rasa na cidade. Foi assim que vi Damasco pela primeira vez, cidade das flores e dos minaretes, das igrejas e das varandas em madeira antiga (das mashrabiyas), dos fantasmas e dos sonhos, os maus e os bons, eterno lugar de peregrinação: depositem ali o meu coração, aos pés do Monte Qasioun, onde morou Adão, onde rezaram Abraão e Jesus Cristo e onde dorme a cabeça de São João Baptista. De todo o modo, ele já lá ficou.

II. MAALOULA

Quantas pessoas têm de calar-se numa língua para que ela morra, e durante quantos anos devemos ficar à espreita, para garantir que não aparece um novo falante e que está mesmo morta, para disso lhe passarmos certidão? Uma língua morta, um desses códigos falados que serviram a sucessivas gerações, que dela se aproveitaram para seduzir, trair, negociar, enganar, levar à perdição, e finalmente morreram com ela na boca sem que ninguém a herdasse. Com as línguas morrem as culturas, os povos, as terras e os homens e outros vêm em seu lugar, instalam-se por cima das casas desabitadas, inventam novos códigos e novas formas de trair e de enganar, que é do que o mundo se alimenta, fingindo que não dá pela diferença. Não sei quantas vezes morreu o aramaico, que foi a língua que falou Jesus de Nazaré, mas outras tantas terá renascido, e quem a conhece e a ensina vem-se aguentando a pulso, nas povoações áridas e cristãs da Síria. Dizem que se fala noutros lugarejos, desses que podemos chamar de berço da civilização, mas fala-se pouco porque foi vítima de várias tragédias, que quase a extinguiram e que a perseguiram daqui, de Maaloula, para fora. O êxodo, que tanto pode ser o passo que precede a morte como o que antecede e promete uma nova vida, foi curto desta vez, e os aramaicos, ou melhor, os falantes de aramaico, voltaram a morar no lugar de Maaloula, e acrescentaram ao seu dicionário palavras como “rapto”, “extremismo”, “resgate”, e outras que assombram o seu regresso depois da ocupação pelo Daesh e pela Frente Al-Nusra.
Que as línguas morram, isto é, que um dia se dê o último suspiro do último falante, é uma coisa, que denuncia a passagem do tempo, normalmente de muito tempo, e a impavidez do movimento da história. Outra coisa é que tentem trespassá-la, cortar-lhe o pio, que a matem para que nunca mais se ouça, para que o vento não volte a transportar certas palavras, para que não as ouça Deus em forma de oração. Podia dizer que viemos a Maaloula para ouvir os últimos testemunhos da língua de Jesus Cristo, para ouvir rezar em aramaico, mas o que nos trouxe até aqui foi antes, ou primeiro, a curiosidade pela resistência. Esta cidade, e as que estão à volta, contam-se entre as que foram abandonadas, excepto por uma franja de jovens intrépidos que se armaram e se fizeram soldados, e que combateram e expulsaram o terror. Uma vez expulso, reposta a estátua de Nossa Senhora no topo, que não sei se foi destruída ou guardada numa cave, voltaram e quiseram preservar uma língua e uma cultura muito próprias, que carregam consigo o peso das Escrituras, tendo originado guerras e provocado sangrias e prometido a paz. Viemos para conhecer as freiras que a Frente Al-Nusra levou durante a guerra, e sabe-se lá o que lhes fizeram, porque com o semblante petrificado pouco falam, e porque não lhes perguntámos. De certa forma, mataram-lhes a língua, e cobrem-se agora de negro da cabeça aos pés para nos apontar as pinturas e os ícones queimados, as figuras da Virgem Maria de rosto rasgado (como se desagrava uma ofensa assim, é coisa que não sei dizer), deixando entrever o inferno que terá consumido estas terras durante a ocupação dos radicais islâmicos.
Pois, não a ocupam mais, vencidos pelo povo sírio em armas, ajudado por batalhões de soldados russos hoje anatemizados (anatemizados com um “Z”), cujas patrulhas muito reduzidas ainda vemos. Penso que são os primeiros russos que vemos, passando em grandes carros militares de bandeira tricolor, o branco, o azul e o vermelho, e todos calam essas passagens, como se lhes tivessem cortado a língua (em boa verdade, falam árabe e o aramaico talvez lhes sirva como modo de nos divertir e de nos fascinar, de nos arrepiar com as mesmas palavras que Jesus usou para arrepiar, admoestar e confundir os seus discípulos). Alguns dos comerciantes, dos sapateiros, dos serralheiros, dos mecânicos, dos professores e dos lojistas de Maaloula e Sednayah (este nome infame à custa da masmorra com o mesmo nome) armaram-se e combateram, e logo vieram os aviões de Moscovo que terraplanaram a eito. Juntos ganharam uma guerra, e os sírios ganharam para si, ou perderam, os fantasmas que não os abandonam e que vivem ao seu lado, porque por cada soldado caiu outro soldado, caiu uma criança, um pai de família, uma mãe cheia de fé, desses que chegaram a rezar o Pai Nosso em aramaico e que já não o fazem. O que vemos do cimo da cidade de Maaloula, quando deixamos as igrejas e os mosteiros e as freiras, e as rochas onde se diz que aconteceram milagres (esses fenómenos misteriosos que servem às mães sem pecado e aos patriarcas que abrem o mar, às curas inexplicáveis e aos movimentos estridentes do sol), o que vemos são prédios destruídos e casas esburacadas, cruzes espetadas que voltaram a poisar nas suas pedras de sempre, perante o contentamento da população. Pode ser que elas abençoem o que os olhos vêem, mas antes viram também chegar os macabros servos do Islão, nas suas vestimentas pretas, armados de facalhões e de kalashnikov, sem que os fulminassem com raios. Puderam derrubar as cruzes e disparar sobre elas, espalhar o desespero e encostar todas as pessoas à parede, pondo em causa a sua fé. No dia de hoje, as crianças brincam em baixo, como se a Al-Nusra nunca aqui tivesse estado, e talvez não tenha estado para estes bebés, frutos da peregrinação e que só no retorno formaram as suas primeiras memórias. Nelas não figuram os homenzinhos de preto e as bandeiras de Allah, que aproveitaram a dita “Primavera” para empestar a Síria com um inverno de desolação.
E nós, a Luísa e eu? Nós bebemos tranquilamente o nosso vinho de Maaloula enquanto observamos e absorvemos tudo isto, porque nunca poderemos sequer começar a compreender o fogo que ardeu ali em baixo, onde as pessoas se saúdam, riem e trazem consigo, sem saberem, uma lição de bravura para esse ente maldoso e abstracto que é a espécie humana. À saída, a caminho do Krak dos Cavaleiros – sobre esse castelo que foi cruzado, mameluco, presente de amor envenenado, pelo qual a mulher matou o marido, Sultanete e Sultão, mas que Saladino não tomou, que serve de acicate à imaginação de tantas narrativas antigas, de quando os reis tinham portas secretas e estavam na mira de fraternidades de assassinos, sobre ele remetemos para os livros de história e para as imagens, e guardamos para nós a sensação do vento que sopra nos campos sírios – à saída, as irmãs oferecem-nos os óleos santos e dão-nos a beber a água milagrosa das fontes, usada para regar as árvores antigas e verdejantes que crescem de dentro para fora das igrejas.
“Preparem-se, já que não podem preparar-se, e tenham por exemplo os milagres”, é o que não nos dizem, porque não podem dizer, mas que ouço em retrospecção, imaginando que cada uma das oferendas nos ajudará a combater o horror que vamos ver na cidade de Homs. Todos sabemos, porém, que os milagres não existem, que o aramaico ainda se fala porque alguém o ensina, que ninguém abriu as águas para deixar passar os santos e que foi antes um tufão. Acredito porque vejo, e eu não vejo nada, vejo buracos de balas e prédios soterrados, e vejo cada vez menos por causa do hábito que me adormece, que normaliza a destruição e me desfoca da resistência milagrosa personificada em cada um dos falantes de uma língua que devia estar morta, e que como ela escaparam à lista da mulher de Samarra (a morte, com roupa de morte e ar de ceifeira, que fez da Síria a sua passerelle). Por mais que seja, nada nos prepara para o que vamos ver em Palmyra e em Homs, nem sei se haverá palavras para o contar, e assim poupo-as por agora, na esperança de que não me faltem depois, e confortável por não falar numa língua ameaçada.

III. PALMYRA – I

Faz cinco anos que Palmyra foi libertada do terror. Não fosse o tempo uma matéria tão linear (quem sabe se o é?), e poderíamos ver os homenzinhos de negro, accionando as bombas e premindo os detonadores, destruindo uma cidade muito maior e mais antiga do que todas as suas bandeiras. Nenhum dos imperadores que aqui reinaram recebeu o famoso convite de Maomé para a adesão ao Islão, simplesmente porque o antecederam em séculos, dando origem a um império próprio de rebeldes contra Roma (o seu símbolo é uma mulher, a imperatriz Zenobia, que se funde com o império e que figura na imaginação de todos os sírios). Faz cinco anos que Palmyra foi libertada do terror, e no entanto aquilo que vemos são restos, estilhaços, balas perdidas, e objectos que pertenceram a outro tipo de rebeldes, que sem qualquer convite invadiram e sufocaram a cidade que em tempos reinou sobre o deserto. O tempo pode ser linear, mas aqui o terror alastrou há meia dúzia de anos e isso não passa de um segundo na cronologia de todas as coisas, sendo muito fácil imaginar e até ver os fantasmas do “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” a ganirem fanáticos ao seu deus, enquanto transformam em cacos as colunas, as portas e as salas de oração dos romanos e dos que vieram antes.
É muito fácil escrever o romance de Palmyra: a pedra sangrou e nós chorámos de tristeza, ao ver na televisão os bombardeamentos e as execuções, o laranja-vivo ou o camuflado dos coletes dos prisioneiros, e uma coluna de velhacos armados até aos dentes que por vezes nem se deram ao trabalho de esconder a cara. Os culpados estão algures, alguém os tirou de lá, e resta pó e areia. Porém, não é de um romance que se trata. Tocamos nas pedras e nos buracos dos tiros, pisamos sem querer bocados de estátuas frisadas, e agarramos à mão os projécteis caídos e que já não servem nenhum propósito. Estes serão os que não perfuraram carne, os que não corromperam artérias nem desfizeram ossos, porque os outros foram retirados da cidade quando se lavou o sangue dos homens de Palmyra, dos mártires e dos outros. Entre templos e fóruns, que foram feitos para a oração e para o convívio, montou-se durante a guerra um labirinto, um cenário de batalha citadino, que foi percorrido pelos soldados e pelos terroristas em busca de ângulo para matar. Se o tempo não fosse linear, também os homens de outras eras, de toga e tiara, teriam visto os fantasmas do terror, e talvez proposto a aniquilação imediata da espécie. Em vez disso, a história de Palmyra foi manchada pelo fogo, pelos gritos e pelas feridas dos que vieram cá morrer.
Faz falta saber o que aconteceu aos alistados que não morreram. Sucessivas gerações de rapazes que combateram na guerra da Síria, uns dispensados e outros não, que carregam consigo o fardo de um sem-número de amigos mortos, e a dor de terem também eles causado a morte. Quantas valas escavadas à pressa não guardam os ossos daqueles que tocaram? Não perguntei sequer o nome ao soldado do Exército Sírio que nos acompanhou na visita a Palmyra. O Ali apresentou-se e não falou mais, e afastou-se para fumar os seus cigarros, deixando-nos percorrer sozinhos as ruas com vista para a Cidadela. A guia que veio connosco, que é amiga do Ali, comenta que ele tem os olhos tristes porque expulsou os terroristas de Palmyra (sim, o eufemismo é “expulsar”), e por muito pouco não foi ele próprio “expulso”. Não sei como se adivinha a tristeza de alguém, mas também não sei o que é ter de agarrar o demónio pelos cornos e de os arrancar sem pestanejar, depois de à volta todos terem caído em combate. Podem tocar as trombetas e o sol voltar a raiar sobre Palmyra, que foi salva, mas quem olhou o terrorismo nos olhos fez-se pedra e tornou-se parte fixa de uma história de monumentos e de colossos, desafiando a linearidade do tempo, e perdendo o direito de reconstruir um país em pedaços. Escapou-se a Medusa que os desfez, que cumpriu o seu trabalho aterrorizador e se mascarou de ideia. Foi ceifar vidas para outro lugar, e nós distraídos nem percebemos o seu nome.

IV. PALMYRA – II

O Daesh montou acampamentos muito perto, tomando controlo sobre zonas de Deir ez-Zor, e por lá permanecem os bombistas, negociando em moeda própria e em mulheres tapadas, e simulando perante o resto do mundo que não existem mais. Não escapam de certas bolsas de território, e a partir dos seus principados enchem de medo os que vivem em redor. É por isso que, em Palmyra, nos vemos rodeados de exércitos, e podemos ver o que mais ninguém vê. Na verdade, a ameaça de paz que desperta na vila, e que se reflecte nos primeiros sorrisos de rapazinhos, que jogam à bola e nos convidam a jogar, chutando contra paredes em que pode ler-se, em russo, “desminado” ou “morte ao Daesh”, mantém-se e propaga-se a custo de verdadeiras companhias externas, que fazem as vezes de exército. Os russos estão no terreno, a recuperar os arcos e os anfiteatros, mas a base principal é dividida entre o Hezbollah e o Exército Afegão. Não sei qual é a natureza deste último, visto que carregam a bandeira do Afeganistão antigo, de quando não tinham sido exilados pelo Emirado Islâmico: são um exército-no-exílio, ou um exército-sombra, composto por desterrados sem missão. Várias vezes me pergunto diante de quem responderão, mas muitas perguntas ficam sem resposta na República Árabe Síria.
Esta ruína é a Palmyra que sobra, e no entanto é a que herdaram muitas crianças que pulam, nascidas depois da destruição do Templo de Bel, que correm atrás de cães sem dono, uns estropiados na guerra e outros depois, atingidos por uma das pedras que voam ao azar, atiradas por brincadeira. Todos se misturam nas ruelas, comerciantes, soldados, crianças e animais, menos nós, a quem esse direito é vedado, pois que todos nos perguntam quem somos e de onde vimos e nos olham de alto a baixo, como se há muito tempo os que são como nós tivessem deixado de fazer parte desta intrigante moldura humana. Escapam-se para as ruas e é nelas que passam o tempo, o que é natural tendo em conta o nível de destruição das casas, das escolas, dos museus e dos hospitais. Não é propriamente alegria o que revelam quando peço um café numa das bancas, e se juntam dez pessoas, primeiro, e depois mais dez, que se perguntam o que é isso que quero beber, e que discutem vigorosamente entre elas para poderem satisfazer o meu pedido. É que poucos costumam interferir no seu quadro, e é o que se promove nestas visitas de bibelô a um país destruído. Não têm café, não. Têm uns pacotes que poderiam vir a dar café, mas não podem aquecer água, e oferecem os pacotes e doces e bebidas para que não guardemos más lembranças de um sítio tão bonito – ou que foi em tempos tão bonito, e que será preservado na memória como uma dessas maravilhas desaparecidas, algumas sem história como os Jardins Suspensos da Babilónia, e também sem testemunhas, porque os vivos não as visitam. Precisámos de uma licença especial para aqui entrar, traficada com os militares na beira da estrada, e daqui levaremos, sem pedir nova licença, a maravilha, a pena, a miséria, e pedaços de pedra nos bolsos. “Depois fazem novos”, é o que nos dizem, em troca de um agradecimento e de saberem que produzem nos visitantes um sentimento de grandeza e de exclusividade.
Custa-me acabar e ver que as memórias deste lugar se tornam mais turvas, que se fundem umas nas outras, e lamento o que não trouxe comigo. Não podemos arrastar connosco as areias e a gente, as estátuas e as armas, nem cabe em parte nenhuma o rio em que nos despedimos de Palmyra. Eu não sabia que ia ver um rio no meio do deserto. Não podia imaginar que antes de sair me guiariam de jipe até um troço de água transparente, que voltou a correr depois da seca, junto à base militar (foram os russos que escavaram), e que arregaçaria as calças para molhar os pés, à beira dos soldados pashtun e dos outros, que fumam e assobiam, de cócoras, numa espécie de pose para as fotografias que não deveríamos tirar. Dou uns passos mais para dentro, para arrefecer os pés na água transparente, enquanto o vento sopra nas palmeiras e os pássaros chilreiam, dando a este lugar uma atmosfera de paraíso perdido, sobre o qual ondulam bandeiras exiladas. Na água poisam colunas, e o reflexo do que vimos e do que não vimos, o nosso e o dos jovens oficiais do Hezbollah, rindo ao longe, entre braçadas e joguinhos e competições de virilidade. É possível que um deles assobie e apupe, querendo chamar a nossa atenção e preparando-se para trautear uma cantiga árabe, mas, se assim for, ficará entre nós, eles e o deserto.

V. HOMS

Já ninguém tem a sorte de conspirar ou de ter de o fazer, e digo “a sorte” porque é um acto que une quem o pratica, que normalmente imaginamos à luz das velas ou de uma candeia de azeite, comunicando em sussurros, apontando mapas, muito próximos e enamorados pelo que os aproxima. Não é por acaso que idealizamos então casais de revolucionários, e envergam as mesmas faixas vermelhas, sobem os punhos em conjunto (coreografados no jeito de levantar), e temos exemplos na nossa história, dos falhados que travaram batalhas e desistiram, dos que pereceram ultrapassados ou acidentados, ou dos idealistas que se casaram e separaram de rompante, porque o segredo apaixona e a revelação desconstrói e mata todos os átomos da esperança.
Conspirar, nos dias de hoje, ou bem que é um romance, ou é um crime de punição severa. Talvez não seja o mais aconselhado, mas é como escolhemos passar a nossa noite na esplanada de um restaurante da cidade de Homs, ou do que foi outrora a cidade de Homs, rodeados de dezenas de árabes que fumam narguilé, os jovens e os velhos, e as mulheres também, à medida que o sol se põe e que desaparece primeiro a sombra da torre do relógio e depois a própria torre, na praça central envolta na penumbra.
Sussurramos entre cortes de electricidade, e a escuridão total ora convoca um silêncio de sepulcro ora o som comovente dos gritos e cânticos de quem nos faz companhia, como se assim festejassem um aniversário, ou é apenas a forma que têm de contrariar as falhas de energia que contaminam toda a Síria, simulando uma fantasia alegre. O que está a acontecer neste país, que cidade é esta que é escombro e ruína, e onde estão os coldres e as armas de que nos falam, como se dentro destas fronteiras frágeis se dividissem em milícias e exércitos privados? Como se aplicam os perdões, e como se fazem os acordos, e quem pode agregar, debaixo de um mesmo céu, os cristãos e os xiitas e os alauítas e os radicais e os curdos e os separatistas e os que querem apenas o sossego das suas casas, onde não chega a luz e a água? Não falamos numa língua desconhecida de toda a gente, e é muito parecida a linguagem de todos os conspiradores, os gestos teatrais que usam para fingir inocência, mas paira sobre nós uma dose de tolerância que permite um pouco mais de ousadia, como se nesta mesa e em mais nenhuma se falasse sobre as prisões (conhecidas pelos nomes das cidades) e sobre os governantes, e também sobre o futuro, pior, sempre pior, que espera os jovens em aparente extinção, tamanho é o êxodo. Outros estão a contrato no Exército, mas o contrato é perene e leonino, e gastam o pouco dinheiro que têm em cigarros, vestem uniformes esfarrapados e pedem boleia na estrada nacional, para poderem atravessar o país com os civis, num dos muitos carros carregados de autocolantes do Presidente ou do pai (o mesmo olhar, os mesmos óculos, o mesmo uniforme), que é condição para serem parados menos vezes. Vemos muitos na nossa longa viagem para Homs, e ignoramo-los, deixamo-los de polegar estendido e cigarro na boca, não sacodem a cinza e por vezes ela esburaca-lhes a farda, mas apanharão o próximo, e assim poderão ir para Homs ou para Aleppo, ver os pais e a destruição e o escombro e a ruína, na mira dos infinitos cartazes da campanha presidencial, gastos como as fardas, já esverdeados e musguentos, e não sei se por isso mais ou menos assustadores. Quantas perguntas nos fazemos e quantas temos de calar logo que se acentuam os olhares, porque somos os únicos que vieram de fora das fronteiras, supostamente entretidos com as histórias e as guerrilhas e as ameaças, com a comida e os doces, supostamente convencidos do pensamento único seguido pela turba de gente, embora todos sejam tão diferentes entre si.
As coisas mudam quando se entra em Homs, porque sobre a realidade não tocam peças de música clássica, e os prédios, todos destruídos, por mísseis, bombas e artilharia, não emocionam: eles imunizam, e obrigam-nos a vestir outra pele, uma que se acomode às dezenas de milhares de pessoas que voltaram às suas vidas, e passeiam entre a destruição, com os sacos das compras, as malas de negócios ou as batinas de religiosos. Ali era uma escola, e acolá um campo de jogos, ou não vês o cesto de basquetebol caído, os buracos de balas, os graffitis ameaçadores, e as crianças que vêm lá ao longe, e que trazem debaixo do braço uma bola, que atirarão na mesma ao cesto, e depois irão pela estrada até ao mercado, para fazerem os seus recadinhos, escapando das pedras que ainda caem?
Já viram tudo, abandonaram a cidade, tomada pelos terroristas, e voltaram mais tarde, guardam as cicatrizes, as suas e as de quem lhes morreu, e fazem-nos companhia esta noite no restaurante, tão silenciosos, ou por vezes festivos, mas como se não lhes restasse nada para dizer, nada de muito sério, nada que os faça murmurar, nada de conspirativo. Essa sorte, é evidente que é uma sorte, é nossa, junta-nos e é apaixonante, mas também se apaga lentamente, porque fomos apanhados pela doença, e morrem-nos os átomos de esperança, com a revelação de uma tragédia chamada Síria.

VI. ALEPPO

Tragédia? Porque nos chamas de “tragédia” a nós que a sofremos, que perdemos a fala e desaparecemos dos mapas? Uma cidade acaba se perder o nome, a voz e o rosto, se for decidido por quem detém o poder que ela acabou, e que rolarão na areia as carcaças do seu império, fragmentos de colunas e de minaretes, e ossos de gente trazidos na boca pelos cães raivosos que ficaram.
Os que escaparam, fugidos de barco e sobrevivendo aos naufrágios, podem contar a nossa história, exagerando os cheiros das ruas e as cores da velha Aleppo, e como adivinharam o fim ao verem um só levantamento de armas. Fizeram as malas ao som das explosões, que se confundiam com as de uma grande festa (como quando ganha um Presidente), e foram de terra em terra partilhar a tragédia.
“Não restou pedra sobre pedra em Aleppo!”
Vais na cantiga dos contadores de histórias, que inventam cheiros e cores e o drama da tragédia, e que ganham a vida à custa da queda das civilizações? Quantos contadores lendários não devem a sua fama às ruínas do Nínive e da Babilónia, sobre as quais dançaram? Vem e vê, pega na mão dos reconstrutores de Aleppo e diz-lhes que o nome deles é “tragédia”, e pede que abandonem a cidade.
(Não é como se Aleppo falasse; é claro que Aleppo fala. Tem mais de 5000 anos, e os fantasmas atravessam-na. As vozes dos mortos misturam-se, dizem como morreram, mas dizem-no em árabe. “Foi uma flecha, uma espada, uma praga, um veneno, um tremor, uma bomba, foi a idade que me atingiu”. Convidam-me a ver com os meus olhos: se Aleppo estiver morta, será meu o primeiro punhado de terra.)
Deixemo-lo entrar, percorra o caminho que lhe desenhámos e que não se desvie muito, e alinhemos a nossa história conforme quis o tirano. Talvez vá depois escrevê-la noutro lugar, e faça frente aos foragidos, contando a beleza do castelo, a alegria dos pedreiros e dos lojistas, e o sabor das romãs. Ganharemos para nós um defensor, um apaixonado sem correspondência, e um sírio encartado.
(Tudo se compra. É nos desvios que descobrimos que Aleppo não é uma encenação, e que se move. Tem a vitalidade dos renascidos, a vergonha dos pedintes e a ganância dos mercadores. Sozinhos, desenhamos um percurso pelas igrejas da cidade. A igreja ortodoxa está cheia: um padre celebra missa, e vários confessam jovens ajoelhados no mármore ao fundo. Não entra luz pelos vitrais, e apenas uma escultura de Jesus Cristo surge iluminada no altar. Existe fervor nos jovens, e as mulheres sírias cobrem-se com véu, branco ou preto, tão bonitas na sua reclusão. Um dos rapazes explica-nos como refizeram a cúpula que uma bomba destruiu, e só me recordo de uma missa em Mrs. Miniver, de William Wyler. A guerra, isso sim, é uma tragédia. No largo da igreja, fazem uma festa, distribuem comida, e as crianças jogam à bola. Puxam-nos para o meio, e tiram-nos fotografias que não sabemos onde estarão. É nisso que pensamos umas horas mais tarde, quando bebemos cerveja no terraço de um bar, creio que se chamava “White”, e nos perguntam “Imaginavam-se a dançar num bar em Aleppo?”.)
Está a sair por onde entrou. O que será que viu e o que vai contar? Talvez diga que o sentaram no trono do Palácio e que o refrescaram com leques e sumos argentinos. Foi servido nos melhores restaurantes, onde comeu ao lado dos bispos e dos sheikhs. Passou sempre no sítio certo à hora certa…
Vejam! É o grande Rei que entra pela cidade! Quase se cruzaram. Abram os portões e toquem as trombetas, perfumem o ar de jasmim para que passe, e com o seu sorriso frio contemple a história que dobrou, e a cidade que não quis morta. Afastem dos buracos as suas pernas de colosso!
(Saímos de Aleppo enquanto a frota presidencial entra na cidade. Celebra-se hoje o Eid, e é o dia da reconciliação entre o Presidente e a cidade esganada, depois de 11 anos. Podemos adivinhar o desespero que se aproxima, mas vimos ainda os restos da grandeza do passado, antes de nos despedirmos de vez do deserto sírio. A decadência espalha-se, e onde nós contemplámos ruínas outros verão apenas areais solitários. Um viajante do futuro, vindo de muito longe, poderá enterrar os pés na areia, e enrolar-se numa bandeira que em tempos representou a Síria. Irá reconhecer o rosto ao centro? Chamemos-lhe “Ozymandias”. Podia ser uma tragédia, não fora apenas o tempo esculpindo a pedra.)

VII. EPÍLOGO
DEZEMBRO DE 2024

Visitei um país que já não existe. Transformou-se numa ruína em 10 dias, desgastado como um império antigo e amolecido numa paz suspeita. O tirano cansou-se de lutar, e ninguém podia lutar em seu nome. Se o tempo se demorasse, podíamos ver a espada que o decepou atravessar a cartilagem e o osso e sem que sangrasse cair no chão a cabeça de Bashar al-Assad. O carrasco logo a traficou, e o traficante foi pilhado e ela passou de mão em mão até se perder para ser encontrada, um dia mais tarde, nos confins do deserto da Síria. Um viajante que a encontre, já desfeita, perguntará se pertenceu a um grande rei, mas ninguém no deserto – nenhum dos beduínos, dos nómadas, dos mercadores das caravanas – sabe de quem foi. Os tiranos e os príncipes também se acabam. Que resposta daria a sua boca morta, se por momentos deixassem que falasse?
O viajante alucinado, fugido da sua própria terra – é sempre uma fuga uma viagem ao deserto sírio – espeta então a cabeça num cajado, acende uma fogueira, e toda a noite lhe pergunta, diante de um silêncio de sepulcro: “Tiveste pai e mãe? Herdaste uma nação ou fizeste-a? Quão duros foram os teus inimigos? Investiste contra eles? Foste traído? Escolheste bem os teus senadores? Perseguiram-te? Deixaram-te governar? Amaste a tua mulher e os teus filhos? Favoreceste a família real? Fechaste-te num palácio enquanto os teus súbditos morriam à fome? Viste como viviam os presos? Dormias bem de noite? Também acordaste ao som das bombas? Fazias tudo outra vez? Em que acreditaste?”.
Mas o fogo esmorece e o viajante esgotado aninha-se para dormir, vigiado por aqueles olhos bem abertos, como os olhos de um leão que tudo vê – ou tudo viu e tem saudades.