Quando a URSS implodiu, o mundo inteiro acreditou que a democracia tinha ganho definitivamente a guerra. Depois de 44 anos de guerra-fria, com uma cortina-de-ferro a separar o Ocidente do Leste da Europa, o grande país que liderava o bloco comunista depunha as armas e confessava-se vencido.
Daí para a frente ninguém pensava num passo atrás da Rússia: seria uma questão de tempo até ela evoluir no sentido da democracia.
Hoje, já todos percebemos que nos enganámos – e que nos encontramos num tempo diferente.
As democracias, que pareciam triunfantes, engasgam-se – e os países autocráticos mostram os dentes.
Na Europa, a Rússia desafia o ocidente democrático; no mundo, a China confronta os Estados Unidos.
Sucede que, enquanto na Rússia vigora um regime ditatorial, com o poder muito centralizado num homem, a Europa ocidental é um bloco fragmentado, um puzzle de países com interesses por vezes contraditórios.
Enquanto na Rússia os mecanismos de decisão são fáceis, não provocando grande desperdício de energias, na Europa ocidental (leia-se União Europeia) as decisões são lentas e a execução difícil.
A agravar as coisas, cada um dos países ocidentais não pode considerar-se um todo coerente, uma entidade munida de uma vontade firme e sabendo o que quer – pois estão divididos por dentro, com opiniões públicas polarizadas em torno de partidos em luta.
Veja-se Portugal, onde o Governo não consegue aprovar as suas leis.
A Europa Ocidental, que há umas décadas parecia pujante e vencedora, surge como um amontoado de nações divididas internamente e sem um objetivo comum, perante uma Rússia coesa e determinada, com objetivos bem definidos.
Isto, quanto à Europa. No plano global, a China desafia os EUA. E aqui também se verifica um fenómeno semelhante quanto ao exercício do poder: na China não há conflitos políticos internos, o poder está concentrado num partido e as decisões são fáceis, enquanto na América há uma democracia, conflitos internos, desperdício de energias.
Podemos dizer que o capitalismo foi ingénuo ao entregar as cartas ao inimigo, concentrando grande parte dos investimentos no Oriente, onde a produção era mais barata, fazendo da China a ‘fábrica do mundo’, e colocando o Ocidente nas suas mãos.
Apesar de tudo, a oposição EUA-China não é tão desequilibrada como a que existe entre a Europa ocidental e a Rússia.
Porquê?
Primeiro, porque, enquanto a Europa é um puzzle de países com interesses nem sempre coincidentes, os EUA são um só país.
Segundo, porque no presidencialismo os mecanismos de decisão são mais rápidos e a conflitualidade interna é menor do que no parlamentarismo.
Dito isto, é claro que as democracias – e sobretudo as europeias – encontram-se perante um enorme repto. Se querem sobreviver, têm de se reformar. Os próprios cidadãos sentem isto, e daí a contínua ascensão da extrema-direita.
As pessoas querem lideranças mais fortes, maior poder de decisão, menor conflitualidade interna.
Quem ganha as eleições, nem que seja por um voto, deve ter condições para governar.
Por outro lado, a regra da unanimidade, que tem vigorado na União Europeia, não é possível manter por muito mais tempo.
Obter o consenso de 27 países é um inferno – e só dá trunfos aos seus inimigos.
Até porque as decisões, para obterem o consenso de todos, acabam por ser redondas, pouco incisivas, falhas de audácia e espírito renovador.
A Europa, para se fortalecer, tem de aceitar a liderança do eixo Roma-Paris-Berlim, que poderá integrar propostas de cada um dos membros da UE mas sem ficar refém delas.
E dentro de cada país é preciso caminhar para uma maior eficácia de decisão, o que supõe o reforço do poder executivo.
O ótimo é inimigo do bom – é um ditado português que aqui se aplica que nem uma luva. Os perfeccionistas da democracia podem estar a ser hoje os seus principais coveiros. A democracia tem de ser competitiva com outros regimes em termos de resultados; caso contrário, está condenada. Ao querermos um sistema ideal, uma democracia ideal, acabámos por criar uma realidade frágil que será facilmente tomada pelos seus inimigos.
Confesso que estou preocupado com as ameaças à democracia que se adivinham no horizonte.
E, se a América dispõe de um sistema político, de uma energia, de um poderio económico, de um dinamismo que lhe permitem fazer frente à China, embora perdendo terreno, a Europa não mostra capacidade para fazer frente à Rússia.
Ainda vamos a tempo.
Mas é preciso abrir os olhos – ora vejo muita gente que não percebeu a ameaça que paira sobre o modo de vida a que nos habituámos.