A Igreja portuguesa vive tempos conturbados, sendo as divergências entre bispos públicas e evidentes. «Está sem rei nem roque», diz ao Nascer do SOL um teólogo. «No fundo, a Igreja revela bem a divisão na sociedade portuguesa entre esquerda e direita», acrescenta.
Depois do cardeal e bispo de Setúbal, Américo Aguiar, ter ido à Assembleia da República pedir uma amnistia para os presos políticos, sem ter consultado os seus pares, nomeadamente a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), nem o Patriarcado de Lisboa, agora foi a vez de José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima, e presidente da CEP , surpreender os seus colegas no final do encontro Sinodal nacional – que reuniu em Fátima 300 participantes das várias dioceses –, ao não dar cavaco a ninguém, e falar em nome da Igreja sobre a manifestação que decorria em Lisboa, contra o racismo e xenofobia, mas que muitos viram como sendo contra a PSP. Com o lema ‘Não nos encostem à parede’, milhares de manifestantes desfilaram pela Avenida Almirante Reis, empunhando cartazes onde se lia ‘Violência policial mata’; ‘Basta de brutalidade policial’; ‘Contra todas as prisões; e ‘Violência policial = Herança colonial’. «Às vezes, a indignação significa dignidade e significa projeto, sede de um mundo melhor», disse D. José Ornelas.
O bispo de Leiria-Fátima reforçou que os manifestantes deram um sinal de «não resignação», acrescentando que «tem a ver tudo com sinodalidade, do estrangeiro do migrante, porque a Igreja tem por vocação ser migrante, migrante nas culturas, na história, no tempo e também nas ideias. Não podemos ficar simplesmente parados e a Igreja também não pode ficar», adiantou, citado pela agência Ecclesia.
Em defesa da PSP
A Polícia tem estado debaixo de fogo desde a célebre rusga à Rua do Benformoso,a 19 de dezembro, sendo acusada de racismo e de estar a mando do Governo, e as palavras do presidente da CEP não caíram bem nem na Igreja nem na PSP. No mesmo dia em que D. José Ornelas se colocava ao lado dos manifestantes que proferiram palavras de ordem contra a PSP, o novo ‘responsável’ pelas Forças Armadas e Forças de Segurança, que será ordenado bispo a 26 de janeiro, dava uma entrevista à agência Ecclesia, onde assumiu um discurso literalmente oposto ao de D. José Ornelas: «É essencial que as Forças de Segurança nos ajudem a todos a uma convivência pacífica, na diversidade que vai ser a nossa sociedade. Que ninguém tenha dúvidas de que a nossa sociedade é cada vez mais plural, quer do ponto de vista étnico, quer do ponto de vista cultural e religioso, mas vivemos num Estado de Direito, que todos temos de respeitar», disse D. Sérgio Dinis.
O novo bispo foi mais longe na defesa da dignidade das Forças de Segurança, alertando para a necessidade de melhorar as condições monetárias e de trabalho, pedindo um «esforço muito grande para tornar as carreiras atrativas». «Imaginemos um jovem que vem do Interior para Lisboa, onde tem de pagar uma renda com o ordenado que recebe: é atrativo ser-se polícia hoje? Sabendo que terá de ali viver alguns anos?». Terminava apelando aos políticos, e não só, para não usarem as Forças de Segurança para os seus propósitos: «É necessário respeitar e salvaguardar a sua autonomia, é lamentável tentar retirar dividendos políticos do agir de instituições tão nobres e importantes, elas não podem ser arma de arremesso dos políticos».
Patriarca defende escola de oficiais
No dia de Natal, o patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, que também foi bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, saiu em defesa dos agentes envolvidos na operação: «Nós sabemos que a nossa PSP tem uma das mais prestigiadas escolas, que é o ISPSI, o Instituto Superior de Ciências Policiais de Segurança Interna, que tem um reconhecimento internacional pela sua competência científica. Tudo aquilo que é a atuação concreta no terreno das nossas forças de segurança é nesse laboratório científico delineado, planeado», disse à Lusa e à RTP. «Posso garantir que tem uma dimensão ética muito profunda».
O homem que andou em missões com as Forças Armadas e com as Forças de Segurança não tem muitas dúvidas sobre o comportamentos dos polícias: «Nessa dimensão ética há aí um princípio que é basilar. […] Nunca a polícia usa meios que sejam desproporcionais com os fins a que se propõem. Nós somos uma sociedade que só com mãos dadas, cooperando, construindo pontos, incitando e experimentando e ensaiando entendimentos, é que, como sociedade portuguesa, continuaremos o rumo da história, que é a história de Portugal».
Sobre os problemas que Lisboa enfrenta, D. Rui Valério defende que «nunca deixa de ser uma cidade acolhedora, uma cidade de esperança. Todas as forças vivas que a compõem, que a constituem, estão verdadeiramente empenhadas e até comprometidas com o bem comum e, sobretudo, com a promoção da dignidade de cada ser humano». Como facilmente se percebe, D. José Ornelas está de um lado e D. Rui Valério e D. Sérgio Dinis do outro. A revolta de alguns bispos e padres com o bispo de Leiria-Fátima levam-nos a recordar o seu passado, dizendo que noutras ocasiões não foi tão lesto a condenar comportamentos. «É curioso como os bispos de Setúbal têm todos uma necessidade de defenderem a agenda da esquerda. D. José Ornelas foi bispo de Setúbal, o atual é Américo Aguiar, é só juntar as pontas. O famoso bispo vermelho, D. Manuel Martins, tinha razões para o ser. Lutou contra a fome, contra as desigualdades, já estes não se percebe», regressa o teólogo à conversa.
Ao comum dos mortais estas divisões na Igreja podem causar alguma estranheza, mas para um dos padres tido como conservador e, supostamente, contrário à linha dos bispos de Setúbal, a história é bem diferente: «Acredito que alguns tenham a tentação de ver a Igreja como se fosse só uma realidade única, mas estamos a falar de um conjunto de pessoas que são livres de ter o seu pensamento, de ter as suas opiniões, e, por isso, é normal que haja opiniões discordantes. Não recebemos um guião para dizer todos a mesma coisa. Em matéria de fé, todos nós devemos dizer o mesmo. Porque todos professamos o mesmo credo e todos temos o mesmo catecismo. A Igreja apresenta um caminho, uma doutrina, mas há de reparar que aquilo que é definitivo nas declarações da Igreja do ponto de vista da doutrina social é sempre na ordem dos princípios, nunca da aplicação prática».
Ídolo dos polícias
A ‘guerra’ de palavras entre padres e bispos por causa das reações à rusga da rua do Benformoso começou com um artigo do padre Edgar Clara, publicado no Nascer do SOL de 3 de janeiro. Edgar Clara está num retiro de silêncio no Mosteiro do Monte Oliveto, Siena, Itália, e por isso não pôde ser contactado. Mas são conhecidas as desavenças entre Clara e D. José Ornelas, não sendo, por isso, de estranhar, que o bispo tenha tido um discurso literalmente oposto sobre a famosa rusga. Recuperemos o artigo do padre Clara, pároco da Mouraria: «Não posso ficar indiferente às opiniões que algumas virgens ‘comentadeiras’ arrependidas fizeram dos acontecimentos ocorridos há algumas semanas: a Polícia encostou contra a parede uma centena de novos portugueses… (no passado habitavam por aqui os cristãos-novos, agora são os portugueses-novos)». «Estar encostado contra a parede é normal na Mouraria. Em catorze anos, já vi inúmeras vezes a polícia a encostar homens e mulheres contra a parede. Vi a polícia entrar em casas à procura de droga! Vi crianças a chorar, a subir pelos polícias acima para não prenderem os pais… Umas vezes encontraram droga, outras não! Umas vezes levaram-nos presos, outras não! Nunca vi um único partido político a defender a dignidade dos antigos portugueses ou dos portugueses de sempre. Nunca vi uma única ‘comentadeira’ defender as crianças de tamanho espetáculo. Algumas destas crianças nasceram e foram criadas na prisão de Tires… porque Tires tem uma Creche para os filhos das presas! Em catorze anos, já vi menores de catorze anos darem à luz um filho e a fumarem droga».
Máfias bengalis
Edgar Clara é pároco na Mouraria e noutras paróquias das redondezas, e é natural que fale do que conhece. «A Mouraria não é, de facto, o aglomerado de santos que temos pintado. A Mouraria e toda a Baixa de Lisboa, infestada que está de traficantes de droga que, afinal, não passa de uma massa de folhas de louro prensadas, misturadas com caldos Knorr e caca de galinha. Se abrirmos as notícias, num breve clique, podemos ler tudo o que não pude escrever aqui: a máfia bengali, as casas sobrelotadas, as lojas fantasma sem clientes, o novo português adolescente que morreu queimado num ‘hotel’ ilegal – a senhoria não sabia de nada…». Percebe-se facilmente a razão para o artigo de Clara ter circulado tanto nos grupos de WhatsApp de polícias e padres…
Para terminar, diga-se que a manifestação, organizada por coletivos de extrema-esquerda – a extrema-direita fez outra manifestação no mesmo dia, de apoio aos polícias – contou com a presença de vários militantes do PS, entre os quais Alexandra Leitão, candidata do partido à Câmara de Lisboa, bem como dos principais dirigentes do BE e do PCP. E quem foi um dos grandes ausentes, atendendo ao que disse da rusga? Precisamente o presidente da junta de Santa Maria Maior, que justificou no Facebook as razões para não ir à ‘manif’: «A manifestação convocada para sábado próximo, a pretexto do ocorrido no Benformoso, pode até ter como promotores pessoas que estimo e convictas da sua importância, porém está também apadrinhada por muitos radicais populistas, “wokistas de esquerda”, que instrumentalizando a comunidade dos imigrantes visados na operação policial – para quem até aqui pouco têm manifestado preocupação ou solidariedade social – procurarão transformar a manifestação num ataque à polícia, em particular contra a PSP. E com isso não posso concordar. Acho mesmo perigoso e só favorecerá a extrema-direita».