Estado dourado em chamas

O Estado da Califórnia vive momentos difíceis com o deflagrar de um incêndio que já desalojou 180 mil pessoas e vitimou mortalmente 24. Por ser em Los Angeles, personalidades do cinema foram afetadas por este incêndio, o mais mortal na história de um Estado que tem sido palco de cenários dantescos ao longo dos anos.

A Califórnia está em chamas. As imagens que nos chegam de Los Angeles, transmitidas ao longo da última semana, são brutais, e o território conhecido pela alta concentração de estrelas de cinema assemelha-se mais a um cenário dantesco do que propriamente a Hollywood.  Um verdadeiro inferno para os moradores da região, onde o fogo, neste momento, lavra ainda em três frentes – duas no condado de Los Angeles – os fogos Paralisade e Eaton, com o Hurst já sob controlo – e uma no condado de Ventura, com o incêndio Auto. 

De acordo com o site oficial do Departamento de Florestas e Proteção contra Incêndios da Califórnia (Cal Fire), à data de redação, já foram atendidas mais de 20 mil emergências, foram queimados 16 mil hectares, morreram 24 pessoas e foram destruídas mais de 12 mil e 300 estruturas. As características destes incêndios fazem com que o número de vítimas e de estruturas afetadas acresça a estes valores, consideravelmente superiores aos dos desastres de anos anteriores.

Como em todos as ocorrências deste tipo, importa apurar as causas, mas, para já, ainda não há certezas. Enquanto os relâmpagos, principal origem dos incêndios nos Estados Unidos, estão fora da equação, os especialistas e investigadores focam as atenções noutro tipo de possibilidades, como o fogo posto, anomalias nas linhas de eletricidade, queimadas ou até fogo de artifício. As linhas de eletricidade parecem também não ser o motivo, com um relatório da Southern California Edison a concluir que «a análise preliminar efetuada pela SCE da informação sobre os circuitos elétricos das linhas de transmissão energizadas que atravessam a área durante 12 horas antes da hora de início do incêndio não revela interrupções ou anomalias elétricas ou operacionais até mais de uma hora após a hora de início do incêndio». O incêndio poderá ser também fruto de um acidente. Quanto à duração do combate, John Lentini, proprietário da Scientific Fire Analysis na Florida, acredita que o fogo «vai apagar-se quando ficar sem combustível ou quando o vento parar». 

O impacto político

Ainda assim, há outra questão importante e sempre inevitável: a política. O Governador democrata da Califórnia, Gavin Newsom, tem sido alvo de ataques constantes quanto à sua governação ao longo dos últimos anos. A sua taxa de aprovação tem vindo a cair, e estes incêndios serão mais uma machadada no líder do Golden State, como é conhecido o Estado da Califórnia. A sua ação, ou inação, tem sido apontada pelos críticos como a grande causa da deflagração do incêndio.

Danielle B. Franz, CEO da America Conservation Coalition – uma organização estruturada com o objetivo de aproximar os valores conservadores com as causas ambientais –, não poupou as palavras ao criticar Newsom numa peça para a revista americana National Review. «As prioridades do Governador Newsom têm sido surpreendentemente desajustadas», atira Franz, continuando que «para apaziguar os ambientalistas radicais, impulsionou iniciativas de remoção de barragens, sob o pretexto de proteger as espécies marinhas, prejudicando assim o abastecimento de água para utilizações cruciais como a prevenção e o combate aos incêndios florestais». «Não por acaso», continua, «as bocas de incêndio de Los Angeles ficaram secas durante momentos preciosos de combate às chamas. A resposta de Newsom foi essencialmente um encolher de ombros. Dizendo que alguém iria resolver o problema, deixou os californianos a defenderem-se sozinhos», concluiu. 

Mas a crítica de Danielle Franz não se restringe ao Governador, que disparou também na direção da Mayor de Los Angeles, Karen Bass, acusando-a de não conseguir «satisfazer nem sequer as expectativas mais básicas de liderança. Apesar de a Califórnia ser o ponto zero dos incêndios florestais dos Estados Unidos, cortou o orçamento dos bombeiros em quase 20 milhões de dólares. Depois, à medida que o inferno se alastrava, estava a meio mundo de distância, a assistir a uma tomada de posse no Gana e a tentar conseguir um avião militar para regressar a casa». «Finalmente», rematou Franz, «quando confrontada em direto com a sua ausência, permaneceu em silêncio atónito durante quase dois minutos». 

É um artigo altamente crítico, mas que expõe as falhas e a inação – ou ação prejudicial – das autoridades máximas da Califórnia e de Los Angeles, deixando no ar a hipótese de que todo o sofrimento poderia ter sido evitado ou, em última instância, mitigado de forma mais eficaz. 

Joe Biden, o Presidente cessante, emitiu um comunicado oficial onde, após endereçar as condolências à família das vítimas, explicou a ação do Governo federal americano: «Dei instruções à nossa equipa para responder prontamente a qualquer pedido de assistência federal adicional no combate aos incêndios. Sob a minha orientação, foram enviados para a Califórnia centenas de efetivos federais e um apoio federal único, aéreo e terrestre, para apoiar os esforços de combate aos incêndios e ajudar as comunidades necessitadas». No fim, agradeceu aos bombeiros, que considera «corajosos» e uma representação do «melhor da América».

Ainda assim, e como não poderia deixar de ser, a figura de Donald Trump tem sido também central neste processo político que envolve os incêndios. «Os incêndios continuam a lavrar em LA. Os incompetentes [políticos] não fazem ideia de como os apagar. Esta é uma das piores catástrofes da história do nosso país. Não conseguem apagar os incêndios. O que é que se passa com eles?», disse o Presidente-eleito na sua rede social Truth Social, onde acrescentou ainda que «milhares de casas magníficas desapareceram e muitas mais se perderão em breve. Há morte por todo o lado». Em resposta a Trump, Gavin Newsom acusa o ex (e próximo) Presidente de espalhar desinformação, desafiando-o a visitar o terreno: «Convido-o a vir novamente à Califórnia – para se encontrar com os americanos afetados por estes incêndios, ver a devastação em primeira mão e juntar-se a mim e a outros para agradecer aos heroicos bombeiros e socorristas que estão a pôr as suas vidas em risco», escreveu o Governador, dizendo ainda que «no espírito deste grande país, não devemos politizar a tragédia humana ou espalhar desinformação».

Assim, o Presidente que tomará posse dentro de três dias e o Governador da Califórnia estão desalinhados, uma relação que não ajudará, certamente, o processo de combate e de reconstrução quando as chamas tiverem sob controlo.

Um fogo que não olha a carteiras

Como foi referido antes, o fogo foi, até agora, responsável pela destruição de 12 e 300 estruturas, onde se inserem casas, escolhas e outros edifícios. Estima-se que mais de 180 mil pessoas ficaram desalojadas e, sendo que é uma região carregada de estrelas de cinema, os incêndios, naturalmente não os dispensaram. Segundo a Vanity Fair, o leque dos que perderam as suas casas em Los Angeles contam com nomes como Adam Brody, Joshua Jackson, Paris Hilton, Jamie Lee Curtis – que doou 1 milhão de dólares para ajudar as vítimas –, Mel Gibson, John Goodman, Anthony Hopkins, Ricki Lake, Rosie O´Donnel, Miles Teller, entre outras estrelas da sétima arte e da música. 

Harrison Ford, o icónico Indiana Jones, chegou a ser escoltado pelo Departamento de Polícia de Los Angeles de modo a verificar o estado da sua mansão. Por sua vez, Rory Callum Sykes, famoso pelo seu papel na série para crianças dos anos 90 Kiddy Kapers, é uma das vítimas mortais destes incêndios que lavram sob Los Angeles.

A empresa americana AccuWeather estima que o custo total dos danos provocados pelas chamas poderá ascender aos 275 mil milhões de dólares.

A história dantesca

O Estado da costa Oeste americana, banhado pelo Pacífico, tem sido palco de incêndios devastadores ao longo do tempo, sendo que o primeiro registado, o Santiago Canyon Fire, em 1889. Este fogo, provocado pelo Homem, foi responsável pela devastação de 300 mil hectares destruindo colheitas e vitimando animais, principalmente ovelhas, segundo a Orange County Storyland. Até 2018, foi o pior incêndio da história da Califórnia. 

Mas há um dado que salta inevitavelmente à vista: oito dos dez maiores fogos na região, segundo o Cal Fire, acontecerem nos últimos dez anos. No ranking dos vinte mais devastadores, treze foram nesta última década. Mas porquê? 

«Os números são realmente preocupantes», disse John Keeley, cientista do Serviço Geológico dos EUA sediado no Parque Nacional da Sequoia, em 2021 citado pela NASA, «mas não são de todo surpreendentes para os cientistas de incêndios». Para o especialista, este incremento nos níveis de devastação é explicado essencialmente por três fatores: seca e calor invulgares «exacerbados pelas alterações climáticas», aponta a agência espacial americana, florestas com demasiada vegetação, fruto da supressão de incêndios há décadas e ainda o crescimento populacional ao longo das margens das florestas. A questão da seca é particularmente abordada por Keeley, afirmando que «a atual seca não tem precedentes (…) Cada uma das últimas três décadas registou uma seca substancialmente pior do que qualquer outra década dos últimos 150 anos». É, de facto, preocupante.

John Abatzoglou, especialista em ambiente da Universidade da Califórnia, explicou também à NASA o impacto substancial que a seca tem nestes fenómenos, afirmando que os anos de 2020 e 2021 «trouxeram condições de seca complexas – efetivamente, invernos muito secos seguidos de um calor implacável no verão e aridez atmosférica. Esta situação deixou o solo e a vegetação ressequidos em grande parte da Califórnia, pelo que a paisagem é capaz de suportar incêndios que resistem à supressão».

O top 10

A Western Fire Chiefs Association, uma organização sem fins lucrativos que apoia o trabalho de líderes e de organizações com vista a mitigar (e prevenir) o impacto dos fogos e de outras ocorrências, elencou os incêndios mais devastadores, em termos de área queimada, na Califórnia. O maior ocorreu em 2020 nos condados de Mendocino, Humboldt, Trinity, Tehama, Glenn, Lake e Colusa. Foram queimados uns espantosos 418 mil hectares, destruídas 935 estruturas e faleceu uma pessoa.

O segundo da lista, o chamado Dixie, em 2021, não fica muito atrás. Entre os condados de Butte, Plumas, Lassen, Shasta e Tehama, a cicatriz do fogo estendeu-se a 390 mil hectares, destruiu 1311 estruturas e foi responsável pela morte também de uma pessoa. A partir do terceiro, o Mendocino Complex, em 2018, os números baixam consideravelmente, o que não invalida as grandes dimensões dos mesmos. Neste incêndio, cerca 186 mil hectares foram arrasados, 280 estruturas destruídas e uma morte. O SCU Lightning Complex de 2020 foi semelhante, mas não foram registadas perdas de vida humanas. 

Segue-se o Creek, o LNU Lightning Complex, o North Complex, o Thomas, o Cedar e o Rush. O North Complex e o Cedar foram os mais mortíferos deste leque, reclamando a vida, cada um, a quinze pessoas. Ao todo, nestes dez incêndios, cerca de 2 milhões de hectares foram dizimados, 11 mil e 332 estruturas destruídas e 41 vítimas mortais. A maioria dos estragos aconteceu nos últimos oito anos.

Assim, a Califórnia vive, mais uma vez, momentos de sofrimento e de angústia, com milhares de desalojados, entre os quais grandes figuras públicas, e com o maior número de mortes registadas num incêndio no Estado Dourado. As divergências políticas entre o Presidente-eleito e o Governador não deverão ajudar no momento da reconstrução, restando assim esperar que tudo seja resolvido da melhor maneira numa região icónica dos Estados Unidos da América.