O Matuto gosta do seu jardim. Aqui na ‘Casa das Pontes’ – moradia do Matuto e de sua gentil esposa, Dona Sirlei – o jardim é uma alegria viva. Pela manhã as maritacas voam gritando que nem umas estouvadas. Armam escândalo! Gritam enormidades! Batucam bisbilhotices! Na região das ‘Pontes’ há duas que parecem comadres a mexericar. O Matuto sabe de fonte segura que as maritacas são da família dos papagaios. Sendo uma ave inteligente, não pára de palrar, precisamente para chamar a atenção: vocalizando; cantarolando; trauteando. Mas bota vocais, cantarolas e trauteios nisso! É uma chinfrineira do caramba! Algazarra! Entretanto, começam as rolas a arrulhar – há uma chocando no topo duma palmeira no jardim das ‘Pontes’. (quando o Matuto passa perto, ela lança aquele olho, tipo: “chega-te para lá, senão levas uma bicada na corola”) Logo, logo, num frenesim danado, os pardais do telhado começam a trinar e está instalada a sinfonia matinal. As lagartixas assarapantadas ensaiam o seu corre-lá. Os beija-flor adejam frenéticos de flor em flor. As flores, agradecidas, abrem-se que nem deusas sedutoras. Para lá dos muros das ‘Pontes’, a luz mansa desprende a manhã. O sol bonacheirão. As palpitações humanas rebentam. As máquinas feéricas cospem arrotos petrolíferos. É um novo dia! O Matuto sente a casa dedilhar claridades oníricas. Tanta, tanta luz! Tanta, tanta ternura branca.
Aqui nesta terra que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, estamos na ressaca da Primavera, com a sua nitidez mansa. Chegam as chuvas tropicais que aguçam o cheiro da terra nas primeiras gotas gordas que caem do céu. Chuva intensa. Bátegas impiedosas. Água a rodos. Líquido voraz. Eis os trópicos – apresenta o Matuto.
O Matuto – na sua sapiente opinião – tem uma ideia clara de como Agustina Bessa Luís usa os jardins nos seus livros. Em “A Sibila”; em “Os Meninos de Ouro” e especialmente no seu livro “Vale Abraão”, Agustina transforma os jardins em espaços encantados da memória. Por vezes eles espelham os estados emocionais das personagens. Podendo ser serenos e pacatos, ou selvagens e descontrolados. Seja como for, Agustina dá sempre a impressão dos jardins estarem animados duma alma (redundância?) que vibra com os valores, com a renovação, com a beleza… E que fica indolente diante do declínio do mundo. O melhor exemplo disso mesmo, para o Matuto, é a Ema de “Vale Abraão” que de forma Bovaryana, toca na fímbria do prazer sem nunca passar das franjas da felicidade. Filamentos sem corpo – pontua o Matuto.
Nos entre tantos, o Matuto topa com um conto Escandinavo, onde um mordomo respeitável – como convém a todo o mordomo – se curva diante duma senhora respeitável – como convém a toda a senhora – e anuncia: “Minha senhora, com vossa permissão, chegou a Primavera”. “Diga-lhe que é bem-vinda e que pode permanecer por três meses nas minhas terras” – responde a senhora respeitável. Então veio o primeiro domingo da Primavera. E naquela terra vivia um velho mendigo que tinha uma perna de pau. Parece que tinha sido um terrível pirata noutra vida. Bom, de qualquer forma, agora, era apenas um velho mendigo que pedia esmola à porta da Igreja. Naquela terra também vivia uma velha rica que todos os domingos dava ao mendigo uma grande moeda de cobre. Naquele domingo, por ser o primeiro da Primavera, deu-lhe uma grande moeda de ouro. O mendigo sorriu feliz, e pediu licença para oferecer à respeitável velhinha uma rosa. “Que rosa tão bela, mendigo”! – exclamou a respeitável velhinha – “qual foi o jardim onde a colheu”? “Nasceu na minha perna de pau, minha senhora”!
Mas isso aconteceu lá em terras escandinavas – resmunga o Matuto. Onde toda a gente é loura e fria. Onde a Primavera é uma senhora respeitável. Aqui no Brasil, a vida é mais tórrida, abafadiça, estival, cálida, esquentada, escaldante, abrasante, causticante, fervilhante, asfixiante… e outras coisas terminadas em ‘ante’. É verdade! Mas a imaginação é uma constante da vida. Seja na Escandinávia, seja nos trópicos. E na imaginação do Matuto é bem possível nasceram fontes líricas no seu jardim. Haverá banheiras imensas onde saltam peixes voadores. Os pássaros formarão orquestras sinfónicas, com um lagarto de bigodes farfalhudos a dirigir. As palmeiras darão os ramos formando montanhas-russas para os beija-flor brincarem. Os pardais do telhado iriam dançar em carrossel. E as rolhinhas – tocadas por devaneios operáticos – iriam sussurrar umas às outras: Io te voglio tanto bene! Eis o Jardim do Matuto.